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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríarrt)
APRESEISTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ü PENSRMENTG

'" ■': '■"".;■", -i. ■!■'■?- *'

ANO XX — W 238
Sumario

A IGREJA E 0 MOMENTO NACIONAL " 397

U.m documento da Santa Sé:


"CREIO NA RESSURREIQAO DOS MORTOS" 399

Um llvro rico, que deixa questoes aberlas:


"CRIACAO E MITO" por Oswald Loretz 405

Nos primordios da historia da salvacáo:


A JUSTIQA ORIGINAL : EXISTIU ? QUE SERIA ? 410

Um sociólogo tala sobre


"MANICOMIOS, PRISÓES E CONVENTOS" (Erving Goffman) .... 420

No cinema:
"O MILAGRE DA FÉ" 434

LIVROS EM ESTANTE 438

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA

* * •

NO PRÓXIMO NÚMERO:

Lufa de classes e Cristianismo. — Que é um Apocalipse ? — Ressur-


reicáo dos morios : quando ? — E as correntes de oraqoes ?

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Número avulso de qualquer mes Cr$ 18,00

Assinatura anual Cr$ 180,00

Direcáo e Reda^ao de Estéváo Bettencourt O.S.B.

ADMINISTRAQAO REDAQÜO DE PR
Livraria Missionária Editora
Rúa México, 111-B (Castelo)
20.031 Rio de Janeiro (R.I) 20^900 Rio de Janeiro (RJ)
Tel.: 224-0059
CENTI

A IGREJA E O MOMENTO NACIONAL


Os jomáis noticiaram que, em principio de
a Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) _____
gou ao Sr. Presidente da República mais um documento 'de sua
iavra, intitulado «Subsidios para urna Política Social».
É compreensivel que entáo mais urna vez se tenha posto
a pergunta: com que direito a Igreja faz isso?
— Por certo, a Igreja nao é nem tem partido político.
Também nao é urna agremiagáo de técnicos ou especialistas em
economía, sociologia, política... Mas é o Corpo de Cristo pro
longado ou a continuadora da obra de Cristo através dos
séculos. Ora acontece que
— o Reino de Deus apregoado pelo Senhor Jesús nao é
algo de meramente futuro, mas deve-se iniciar já no decurso
da historia deste mundo;
— todas as atividades do ser humano estáo sujeitas aos
criterios da moralidade. Nada ha, na conduta humana (indivi
dual e coletiva), que seja moralmente neutro: os atos humanos
ou se coadunam com o Fim Supremo do homem (e, neste caso,
sao moralmente bons) ou nao se conciliam com o mesmo (e
sao moralmente maus). Em outros termos: as atividades hu
manas ou sao aptas a construir o Reino de Deus na térra (e
sao moralmente boas) ou, ao contrario, destoam dos princpios
desse Reino (e sao moralmente más).
É precisamente como porta-voz do Reino de Deus que a
Igreja se interessa pela ordem temporal em suas diversas
facetas e ousa pronunciar-se a respeito. Nao lhe compete ofe-
recer as autoridades civis pianejamentos de política económica,
habitacional ou escolar, mas, sim, as grandes linhas de cons-
trugáo da sociedade que decorrem da mensagem do Evange-
lho. Se a Igreja nao fizesse isto, seria omissa perante Deus
e os homens.
Esta participacáo da Igreja na estruturagáo da vida na
cional nao significa que os bispos estejam esquecendo os inte-
resses da espiritualidade ou os valores eternos. Na verdade, a
atengáo ao plano horizontal (na medida em que este interessa
ao Reino de Deus) nao excluí, mas supóe, o zelo pelo relacio-
namento direto e intimo do homem com Deus na oragáo, na
vida sacramental e na ascese. Estes valores devem ser assi-
duamente fomentados pelos pastores do Reino. O cristáo que
os esquecesse, correría o risco de se deixar apaixonar mesqui-
nhamente.
É principalmente por seus fiéis Ieigos que a Igreja se
torna presente ñas estruturas da sociedade. Por isto se deve

— 397 —
dizer que o momento atual, cm que o Brasil repensa as suas
linhas-mcslras sociais, é a hora dos leigos. A estes, e nao ao
clérigos, compete colaborar diretamente na configuragáo crista
da economia, da democracia, da sociedade, etc. Eis o que pro-
póe o Concilio do Vaticano II:

"O Concilio exorla os crlstSos, cidadSos de urna e outra cidade, a


procurar desempenhar fielmente as suas tarefas terrestres, guiados pelo
espirito do Evangelho. Afastam-se da verdade os que, sabendo nao termos
aqui cidade permanente, mas buscarmos a futura, julgam poder nogllgenciar
os seus deveres terrestres, sem perceber que estáo mais obrigados a
cumpri-los por causa da própria fé, de acordó com a vocagSo & qual cada
um fol chamado" (Const. Gaudlutn et Spes n? 43).

Ainda urna ponderacáo se impóe:

Nao nos deve surpreender o fato de que os cristáos nao


pensem igualmente a respeito da estruturagáo da sociedade
civil e política. As divergencias sao compreensíveis e legítimas.
Com efeito; imaginemos alguém na rúa posto diante de um
semáforo: o sinal verde e o vermelho tém significagáo inequí
voca, nao deixando margem a hesitagóes da parte do observa
dor. Mas... o sinal amarelo? — É o sinal de transigáo, que
alguns interpretaráo como derradeira autorizagáo para passar,
enquanto outros o entenderáo como advertencia negativa. Qual
das duas atitudes contraditórias é a correta? — Difícil se torna
defini-lo. Tanto os que dizem sim como os que dizem nao tém
razóes válidas para fazé-lo; tanto uns como outros sao since
ros e prudentes, visto que a prudencia é a virtude mais subje
tiva do ser humano: depende da escola, das experiencias, do
temperamento, da idade... que caracterizam cada pessoa. É
o que exige respeito (que nao é relativismo) de cada discípulo
de Cristo aos seus semelhantes sinceros.

Por isto, os cristáos nao se espantam por observar diver


gencias entre os irmáos na fé com relagáo á política. A situa-
gáo nacional é táo variegada e complexa que sugere aos homens
retos mais de urna tentativa de solugáo compativel com a fe
crista. O que importa, ó nao perdermos o amor fraterno e a
unidade nos valores essenciais; importa-nos oulrossim pro
curar discernir, na posigáo de quem diverge, os principios de
verdade e de bem que nela estejam latentes. Esta é a hora
de somarmos, evitando aumentar divergencias e divisóes.
Possam estas grandes verdades orientar os passos do povo
brasileiro nesta hora importante! ... Plora que, com especial
carinho, colocamos sob a tutela da Santa Máe de Deus neste
mes do Rosario, que lhe é dedicado!

Estéváo Bettencourt O.S.B.

— 398 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XX — N« 238 — Outobro de 1979

Um documento da Santa Sé:

"creio na ressurreicáo dos morios"


Publicamos, a seguir, o texto oficial portugués da carta-
-instrucáo emanada da S. Congregagáo para a Doutrina da
Fé (Roma) aos 17/05/79, com referencia a certas questoes
atinentes á ressurreigáo dos mortos e aos Novíssimos (aconte-
cimentos fináis) do individuo e da humanidade como tal1.

Oferecemos o texto, por ora, sem comentarios, a fim de


que se possa tornar conhecido como tal, vista a sua impor
tancia. Servirá para elucidar questoes e dirimir possíveis dú-
vidas existentes entre os fiéis. Dado o estilo conciso dos pro-
nunciamentos de tal carta, voltaremos oportunamente á mesma
nesta revista, propondo um comentario teológico dos seus
dizeres.

Possam os sacerdotes e os agentes de pastoral responsá-


vcis pela catequese utilizar o documento, conscientes da corres-
ponsabilidade que lhes toca na preservaeáo e na transmissáo
da fé confiada por Cristo á sua Igreja em favor de todos os
homens !

«Eu vim para que tenham a vida, e a tenham em abun


dancia !», dizia o Senhor (Jo 10,10).

SOBRE QUESTOES CONCERNENTES A ES CATÓLO GlA

A TODOS OS BISPOS
MEMBROS DAS CONFERENCIAS EPISCOPAIS
Os mais recentes Sínodos dos Bispos, dedicados a Evangeliracáo
e á Catequese respectivamente, contribuirán! para se tornar uma cons-

» Embora datado de malo pp., o texlo latino oficial do documento em


■pauta só foi publicado pela prlmeira vez na edlcSo de "L'Osservatore Ro
mano" de 16-17 de julho pp.

— 399 —
_«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 238/1979

ciencia mois viva da necessidade de urna perfeita fidelidade as ver


dades fundamentáis da fé, sobretudo em nosso tempo, em que
mudanzas profundas no ambiente humano e a preocupacáo de fazer
penetrar a fé ñas diverras culturas humanas obrigam a um esforzó
maior do que em tempos passados, para que a mesma fé possa ser
tornada mais acessível e melhor possa ser comunicada. Esta última
exigencia, tfio premente na atualidade, requcr um cuidado maior
do que nunca para se assegurar o verdadeiro sentido e a integri-
dade da fé.

Por isto aqueles sobre quem incumbe a responsabilidade, devem


estar muito atentos a tudo aquilo que possa porventura vir a cau
sar, na consciénda comum dos fiéis, urna lenta degradacao e a
progressiva extincáo de qualqver e!emento do Símbolo batismal,
indispensável para a coeréncia da fé e inseparavelmente ligado
a certos usos importantes na vida da Igreja.

Para um destes pontos precisamente, pareceu oportuno e urgente


chamar a atencao daqueles a quem Deus confiou o encargo de
promover e de defender a fé, a fim de serem precavidos os perigos
que poderiam vír o por em cauca esta mesma fé na alma dos fiéis.

Trata-se daquele artigo do Credo que diz respeito á vida eterna


e, por conseqüéncia e de modo geral, áquUo que está para além
da morte. Quanto a este problema, o ensino nao pode permitir que
se Ihe subtraia coisa alguma; mais aínda, ele nao pode permanecer
deficiente ou incerto sem por em perigo a fé e a salvacáo dos fiéis.

A ninguém passa despercebida a importancia desse último


artigo do Símbolo baticmal : ele exprime o termo e a finalidade do
designio de Deus, cujo desenrolar-se é descrito no mesmo Símbolo.
Se nao há ressurreigao, desaba toda a estrutura da fé, como afirma
vigorosamente Sao Paulo (cf. ICor 15). Se os cristaos nao estive-
rem em condicóes de ligar as palavras «Vida Eterna» a um conteúdo
certo, entáo as promessas do Evangelho e o sentido da criacáo e
da Redencao esvaem-se, e a própria vida presente fica privada de
toda esperanca (cf. Hb 11,1).

Sendo asslm, como se podem ignorar o mal-estar e a perturbacao


de que muitos ficam possuídos em re!acao a este ponto? Quem nao
vé que a ¿úvida se insinúa sutilmente e chega a atingir mesmo o
mais profundo dos espíritos? E, muito embora os cristaos na maior
parte dos casos, felizmente, nao cheguem á dúvida positiva, sucede
que muitos se abstém de pensar no destino que os espera para além

— 400 —
«CREIO NA RESSURREICAO DOS MORTOS» 5

da morte, porque comecam a pressentir problemas a que receiam


ter de dar urna resposta: Existirá alguma coisa para além da morte?
Subsistirá alguma coisa de nás mesmos depois da morte? Nao será
porventura o nada que nos espera?

A causa disto há que buscá-la, em parte peto menos, na reper-


cussáo que, sem se querer, tém nos espíritos as controversias teoló
gicas, hoje em día largamente difundidas entre o grande público, e
das quais a maior parte dos fiéis nao está em condícóes de discernir
o objeto preciso nem de medir o alcance. Assim ouve-se discutir a
existencia da alma e o significado de urna sobrevivencia e fazerem-se
interrogacoes quanto ao que se pa;sa entre a morte do cristáo e
a ressurreicao universal. Ora com todas estas coisas o povo crktáo
fica desorientado, urna vez que ¡ó neo encontró o seu vocabulario
e as nocoes que Ihe sao familiares.

Nao se trata, obviamente, de coarctar ou entáo de impedir a


investigado teológica, da qual a fé da Igreja tem necessidade e
de cujos resultados, portento, há de poder aproveitar; isto, porém,
de maneira nenhuma permite descurar o dever de tempestivamente
salvaguardar a fé dos cristáos quanto aqueles pontos que sao postos
em dúvida.

é deste duplo e difícil dever que queremos recordar sumaria


mente a natureza e os varios aspectos, nesta situacáo delicada.

E necessário, antes de mais nada, que aqueles que exercem as


funcóes de ensinar saibam discernir bem aquilo que a Igreja con
sidera como fazendo parte da esséncia da sua fé; a investigacáo
teológica nao pode vi:ar a outro objetivo que nao seja o de apro-
fundar isso mesmo e de melhor o explicar.

Esta Sagrada Congregacao, que tem a responsabilidade de


promover e de defender a doutrina da fé, propóe-se hoje recordar
aquilo que a Igreja ensina, em nome de Cristo, especialmente quanto
ao que sobrevém entre a morte do cristáo e a ressurreicao universal.

1) A Igreja eré numa ressurreicao dos mortos (cf. Símbolo


dos Apostólos).

2) A l,greja entende esta ressurreicáo referida ao homem


todo; e:ta, para os eleitos, nao é outra coisa senao a extensao, aos
homens, da própria Ressurreicáo de Cristo.

— 401 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS:* 238/1079

3) A Igreja afirma a sobrevivencia e a subsistencia, depois


da morte, de um elemento espiritual, dotado de consciéncio e de
vontade, de tal modo que o «eu humano» subsista. Para designar
esse elemento, a Igreja emprega a palavra «alma», consagrada
pelo uso que déla fazem a Sagrada Escritura e a Tradicao. Sem
ignorar que este termo é tomado na Biblia em diversos significados,
Ela ¡ulga, nao obstante, que nao existe qualquer razao seria para
o rejeitar e considera mesmo ser absolutamente indispensável um
instrumento verbal para suster a fé dos cristáos.

4) A Igreja excluí todas as formas de pensamento e de


expressáo que, se adotadas, tornariam absurdos ou ininteligíveis a
sua oracáo, os seus ritos fúnebres e o seu culto dos mortos, reali
dades que, na sua substancia, constiruem lugares teológicos.

5) A Igreja, em conformidade com a Sagrada Escritura, espera


«a gloriosa manifestacáo de Nosso Senhor Jesús Cristo» (cf. Cons-
tituicao «Dei Verbum» I, 4), que Ela considera como distinta e
diferida em relacao áquela condicao própria do homem ¡mediata
mente depois da morte.

ó) A Igreja, ao expor a sua doutrina sobre a sorte do homem


após a morte, excluí qualquer expficacSo que tira;se o sentido á
Assuncáo de Nossa Senhora naquilo que ela tem de único,- ou
seja, o fato de ser a glorificacao corporal da Virgem Santíssima
urna antecipaedo da glorífícacao que está destinada a todos os
outros eleitos.

7) A Igreja, em adesáo fiel ao Novo Testamento e á Tradi-


cSo, acredita na felicidade dos justos que «estarao um dia com
Cristo». Ao mesmo lempo Ela eré numa pena que há de castigar
para sempre o pecador que for privado da visfio de Deus, e aínda
na repercussáo desta pena em todo o ser do mesmo pecador. E,
por fim, Ela eré existir para os eleitos urna eventual purificando
previa a visáo de Deus, a qual no entonto é absolutamente diversa
da pena dos condenados. E isto que a Igreja entende quando Ela
fala de Inferno e de Purgatorio.

Pelo que respeita á condicao do homem após a morte, há que


precaver-se particularmente contra o perigo de representacoes fun
dadas apenas na imaginacSo e arbitrarias, porque o excesso das
mesmas entra, em grande parte, ñas dificuldades que multas vezes
a fé crista encontró. No entonto, as ímagens de que se serve a
Sagrada Escritura merecem todo o respeito. Mas é preciso captar o

— 402 —
«CREIO NA RESSURREICAO DOS MORTOS> ' 7

seu sentido profundo, evitando o risco de as atenuar demasiadamente,


o que equivale nao raro a esvaziar da própría substancia as reali
dades que sao indicadas por tais imagens.

Nem a Sagrada Escritura nem a Teolo.gia nos proporcionan)


luzes suficientes para orna represenracáo da vida futura para além
da morte. Os cristaos devem manter-se firmes quanfo a dais pontos
essenciais : devem acreditar, por um lado, na continuidade funda
mental que existe, por virtude do Espirito Santo, entre a vida pre
sente em Cristo e a vida futura (a caridade, efetivamente, é a leí
do Reino de Deus, e é pela nossa caridade aqi/i na térra que há
de ser medida a nosta parfidpacáo na gloria do Céu). Por outro
lado, os mesmos cristaos devem saber bem que existe urna ruptura
radical entre o presente e o futuro, pelo fato de que á economía
da fé sucede a economía da plena luz, ou se¡a, nos estaremos com
Cristo e «veremos Deus» (cf. Uo 3,2), promessa e misterio inau
ditos nos quaís consirte essendialmente a nossa esperanca. Se é
certo que a nossa capacidade de imaginar nao atinge isso, o nosso
coracao instintiva e profundamente tende a chegar lá.

Depois de se terem recordado estes dados, seja permitido agora


evocar os principáis aspectos da responsabiFidade pastoral, tal como
ela se deve traduzir na prátíca, ñas circunstancias atuats e á luz da
prudencia crista.

As dificuldades que andam conexas com estes prob'emas,


írr.póem graves deveres aos teólogos, cuja missáo é ¡ndispensável.
Assim eles f§m o dircyto ao nosso incitamento, bem como áquela
marctem de liberdade qt»e exiiam legítimamente os seus métodos de
traba Iho. Por nossa parte, todavía, é nece'sário lembror incessan te-
mente aos fiéis os ensinamentos da Igreja que constituem a base
quer da vida crista, quer das ¡nvestigacóes dos especialista*:, é ne-
cessário também envidar esforcos para que os teólogos compartí-
Ihem as nossas preocupacóes pastorais, a fim de evitar que os reus
estudos e as suas iniciativas de pesquisa sejam temerariamente di
fundidos entre os fiéis, cuja fé, hoje mais do que nunca, está sujeita
a perigos.

O último Sínodo tornou claramente manife'ta a atencao que


o Episcopado consagra ao conteúdo es-encial da catequese, tendo
em vista o maíor bem dos fiéis. E necessário, pois, que todos aque'es
a quem está confiado o oficio de transmitir esse conteúdo, tenham
do mesmo urna idéía muito clara. Arsím nos devemos proporcionar-
•Ihes os meios para que eles se mantenham muito firmes quanto

— 403 —
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS? 238/1979

ao essencial da doulrina e, ao mesmo lempo, bem atentos para nao


deixar que representacoes infantis ou arbitrarias se confundam com
a verdade da fé.

Deve ser exerdda urna vigilancia continua e corajoso, mediante


urna Comissao doutrínal diocesana ou nacional, sobre a producao
literaria, nao apenas para prevenir a tempo os fiéis contra as obras
que se apresentem pouco seguras quanto á doutrina, mas sobretudo
para Ihes dar a conhecer aquetas outras que se demonstren) capazes
de alimentar e de apoiar a sua fé. Isto constituí unía ta reía ardua
e de grande importancia, que se aprésente urgente, quer pela vasta
difusao da imprensa, quer para aquela descentralizacao das respon
sabilidades que as circunstancias atuais tornam necessária e que foi
desejada pelos Padres do Concilio Ecuménico.

Esta carta, sobre cu ¡o teor havia deliberado em reuniSo ordina


ria a Sagrada Congregacao para a Doutrina da Fé, no decurso de
urna audiencia concedida ao abaixo-assinado Cardeal Prefeito, fot
aprovada por Sua Santidade o Papa Joao Paulo II, que ordenou a
sua publicacao.

Roma, sede da Sagrada Congregacao para a Doutrina da Fé,


aos 17 de maio de 1979.

Francisco, Cardeal Seper


Prefeito

Fr. Jerónimo Hamer O.P.


Arcebispo titular de Lorium
Secretario

Como dito, tornaremos ao assunto oportunamente.

— 404 —
Um livro rico..., que deixa questSes abertas :

"criacao e mito"
por Oswald Loretz

Em sinlese: O livro de Oswald Loretz intitulado "CriacSo e Mito"


estuda os tres prime!ros capítulos do Génesis do ponto de vista literario:
cita numerosos textos da literatura oriental antlga, que o autor aproxima
do texto bíblico, mostrando semelhancas e dissemeihancas existentes entre
aqueles e este. A Biblia, nesses primeiros capítulos, estaría muito chegada
ao género literario do mito, isto é, de urna mensagem doutrlnária sem
grande base ou conteúdo histórico.

Ora tal maneira de entender Gn 1-3 é Insuficiente. O exegeta cató


lico nao se pode limitar a urna análise meramente literaria do texto bíblico,
mas compete-lhe levar em conta outrossim os pronunciamentos do magis
terio da igreja a respeito de determinadas passagens que tém valor capital
para a doutrina da fé; esta se acha estruturada de modo que nao pode
prescindir da historia,... historia que os antigos escreviam segundo regras
de estilo livre, nao comparáveis ás das crónicas contemporáneas.

Comentario: O livro «Criagáo e Mito» de Oswald LoretzJ


aborda os tres primeiros capítulos do Génesis. Já sumaria
mente apresentado em PR 235/1979, 4a. capa, voltamos a
considerá-lo, desta vez com mais pormenores, visto que é
obra momentosa. O autor é católico e publicou scu original
alemáo na Editora Verlap; KatholLschcs Bilwhvcrk em
Stultgart 1968.

Como se compreende, Loretz estuda separadamente a


narragáo sacerdotal P (Gn l,l-2,4a) e a javista 3 (Gn 2,4b-
-3,24). Interpreta-as, porém, do mesmo modo. Segundo Loretz,
as duas pegas vém a ser um tecido de trechos e imagens

1 CrlacSo e mito. Homem e mundo segundo os capítulos iniciáis do


Génesis. Colecfio "Biblioteca de Estudos Bíblicos" n<? 6. TraducSo de
Jopó Américo de Assis Coutinho. Ed. Paulinas, SSo Paulo 1979, 145 x 210 mm.

— 405 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 238/1979

miticas usuais ñas literaturas e tradicóes orientáis antigás


(sumérica, babilónica, ugaritica, cananéia...). Assim a se
mana da criac.áo, o repouso de Deus, os astros que regem o
culto religioso, a produgáo do homem a partir do barro, a
costela na origem da mulher, as árvores do paraíso, a fruta
proibida, a serpente, os querubins... Os autores bíblicos ter-
-se-áo servido dessas pegas míticas; eliminaram, porém, os
elementos politeístas, incompatlveis com a fé de Israel num só
Deus; desta forma a Biblia desmitizou os fragmentos míticos
utilizados. Em conseqüéncia, as narrativas que hoje se encon-
tram em Gn 1-3, nada referem que destoe da mensagem
geral monoteísta dos livros sagrados de Israel, mas também
nada contém de histórico ou científico.

Para chegar a tal conclusáo, Loretz cita numerosas pas-


sagens das literaturas orientáis pré-cristás que ele bem conhece.
Também cita urna serie de exegetas e teólogos contemporá
neos, medievais e antigos, comparando entre si as interpreta-
cóes que tenham dado a Gn 1-3. A documentaeáo e a erudicáo
de Loretz impressionam, sem dúvida, o leitor.

Todavía duas observagóes parecem oportunas diante do


estudo de Loretz.

1. Que deseja o autor afirmar propriamente ?

1) Loretz confronta e discute opinióes diversas... Nega


com facilidade e freqüéncia..., mas deduz poucas conclusóes
positivas; o fio das suas explanacóes é, por vezes, um tanto
confuso. Tenham-se em vista, por exemplo, as seguintes
passagens :

a) A p. 109, lé-se:

"Segundo a narrativa da criacSo, Deus assume, depols da criacSo


do mundo, urna atltude clara para com a sua obra. Ele Ihe aprésenla,
como modelo, o próprlo repouso. E Isto Indica, conforme todo o contexto,
que Deus está sempre voltado para o seu povo, para cuja salvacfio e feli-
cidade, Ele, como Criador, pode sempre Intervlr a qualquer momento. Este
repouso ó, portante, entendido como urna continua acSo de Deus em
prol do seu povo".

É legítimo perguntar: qual a base de Loretz para inter


pretar o repouso bíblico como «continua agáo de Deus em

— 406 —
«CRIACAO E MITO» ti

prol de seu povo»? — O fundamento para urna assercño táo


contraditória nao aparece no contexto da obra analisada.

b) Á p. 105, sobre o mesmo tema encontra-se:

"Deus assume, face á obra concluida, urna alltude de repouso. Porém


o repouso de Deus traduz-se por um velar continuo sobre o povo aliado
para protegé-lo, aínda que isto nao exclua a possibilidade de que ele
possa, eventualmente, retlrar-se no silencio... Sobre este plano de encon
tró, no ámbito da ciiacao, entre Deus e os seus, é sempre possivel urna
ulterior criagáo, urna intervencao geradora de urna vida potente e divina
e que, por isso, é urna nova criacüo. Na espera desta intervengo divina
está a esperanca desciita pela Biblia. Só neste sentido real falta verdadéi»
ramente a cilacáo e, conforme a esperanca expressa no Antigo Testa
mento, somente no futuro pode ela ser aguardada".

A propósito, mais urna vez nao se vé bem por que. o


repouso de Deus signifique necessariamente «o velar continuó
sobre o povo aliado para protegé-lo».

c) Á p. 109, acham-se os seguintes dizeres:

"Considerando que, segundo as Escrituras, a crlacSo é um ato


particular de Deus que consiste na doacSo de urna nova forma de vida,
será preciso renunciar a Interpretar a continua influencia de Deus sobré
o mundo como creallo continua. Neste caso, a acSo criadora, única no
seu género, executada por Deus desde o Inicio, perdería o caráter de
excepcionalidade que Ihe é próprlo, enquanto serla eludido em substancia
o problema particular da relacSo de Deus com a sua criagáo no curso
dos tempos".

Pergunta-se: por que negar que a continua influencia


de Deus sobre o mundo seja urna creatio continua? Se Deus
subtraisse sua agáo sustentadora ou conservadora do mundo,
este nao subsistiría por si mesmo. Eis por que se diz com
razáo que a conservacáo do mundo equivale a urna criagáo
continuada.

Ademáis o texto transcrito é obscuro; afirma ou insinúa


proposicóes sem as provar.

d) A p. 106 lé-se :

"No que respelta ao nascimento do espirito humano, poder-se-la


dlzer de concreto que o comparecimiento do que é novo na realidade,
particularmente o nascimento do espirito, gragas á auto-superacáo de
causas crlaturals, se tomarla possivel dentro da torga divina".

É justo indagar: que significa esta passagem ? ;

— 407 —
12 -PKROUNTE R RESPONDEREMOS» 1538/1979

e) A p. 150, encontra-se a seguinte afirmagáo:

"Do ponto de vista bíblico, o paraíso está mais no futuro que no


passado".

Que significa o mais da frase ácima? — Quer dizer que


o paraíso estava um pouco no inicio, e estará mais realizado
no fim da historia do género humano ?

Na verdade, dir-se-ia que, segundo Loretz, o paraiso a


nada corresponde no passado, mas vem a ser a maneira de
descrever o estado ideal a que terá chegado a humanidade
quando consumada a historia. Diz Loretz:

"O paraíso, na verdade, será criado apenas no momento em que o


próprio Deus for, em plenitude, a vida dos seus (Ap 22, 15)" (p. 150).

Em suma, sao estes aiguns trechos em que a obra de Loretz


parece confusa. De resto, quem a lé atentamente, experimenta
dificuldades para distinguir o que o autor atribui á mitología
(ou o que o autor apresenta como sendo a paráfrase ou o
comentario dos mitos, que ele nao endossa) e o que o autor
afirma como sendo o seu modo de ver ou a sua posicáo pes-
soal. Loretz propóe e debate tantas sentengas que nao se per-
cebem fácilmente as frases que afinal ele assume como válidas
e plausíveis.

2. E a palavra oficial da Igreja ?

No tocante 'á descricáo das origens do mundo e do homem,


tanto na narragáo P como na J, pode-se tranquilamente reco-
nhecer que nada tém de cronístico (em sentido moderno) ou
científico. Os autores sagrados nao pretendían» saber e narrar
como apareceram as diversas criaturas nos primordios da his
toria; nao tinham meios para tanto, visto que escreviam a
enormes distancias dos primordios, nem Deus lhes quis reve
lar, por milagre, a maneira como surgiram os seres inani
mados e animados ñas origens do mundo. Os hagiógrafos ape
nas se interessavam por apresentar urna visáo sapiencial ou
filosófico-teológica do mundo, do homem e das relagóes das
criaturas com o Criador. Quiseram, sim, incutir que há um
só Deus, a cujo poder criador se devem todos os seres que
na antiguidade eram adorados como deuses (astros, animáis,

— 408 —
<CRIACAO E MITO» 13

bosques e plantas). O mundo é bom, nao é eterno. Ao homem


toca um lugar de primazia : deve ele, por seu trabalho, rema
tar a obra de Deus, levando as criaturas inferiores ao servico
do próprio homem e, assim, á glorificagáo do Criador.

Contudo nao se pode dizer que a narragáo concernente


ao estado original (com as suas imagens de paraíso, árvores,
fruta proibida, serpente...) nada tenha de histórico; cf.
Gn 2,8-3,24. Esta seccáo nao pode ser analisada sem que se
levem em conta os dados da Tradicáo e do magisterio da
tgreja, citados no próximo artigo deste fascículo. Urna exegese
puramente literaria e filológica, que abstraía da luz da fé e
da voz oficial da Igreja, nao seria completa nem fiel á ver-
dade. Ora quem conhece os documentos da Tradicáo e da
Igreja, reconhece que a seccáo em foco apresenta, em lin-
guagem simples e figurada, fatos reais, ou seja, a elevagáo
dos primeiros pais (dois ou mais?... Isto nao vem ao caso)
ao estado de justiga ou santidade original. Assim enriquecidos
por dons divinos, os primeiros homens foram convidados por
Deus a dizer Shn ou Nao á graca recebida (o que é figurado
pela narracáo do preceito relativo á árvore da ciencia). Posto
ante a opgáo, o ser humano se afirmou auto-suficiente, re
cusando o modelo ou o programa de vida proposto pelo Senhor
Deus. Cairam, pois, os primeiros pais, perdendo, em conse-
qüéncia, o estado de santidade original que lhes havia sido
oferecido. A queda nada tem a ver com pecado sexual, mas
há de ser entendida como ato de soberba, que se exteriorizou
em desobediencia ou em recusa a Deus. Estes dados sao de
fé e supóem fatos históricos ocorridos ñas origens da historia
do género humano atual. Um exegetá católico que nao os
leve em consideracáo, nao pode ser tomado como padráo.

Eis por que julgamos que o livro de Loretz nao preenche


a finalidade de expor ao público o significado de Gn 1-3; serve
como repertorio de documentos e citacoes interessantes, que
necessitam de ulterior elaboracáo por parte do exegeta católico.

— 409 —
Nos primordios da historia da salvacáo:

a justica original: existiu? que seria?

Em sintese: O presente artigo propóe o que a Escritura Sagrada,


interpretada pela Tradicáo e o magisterio oficial da Igreja, ensina a
respeito do estado de justica original, do qual, conforme a fé, gozavam os
piimeiros país. Eram, sim, dotados da graca santificante e dos dons pre-
ternaturais.

A graca santificante tornava o homem filho de Deus, chamado ¿


visSo do Senhor face-a-face. Tal graca já era a grasa do Cristo; com
efeito, se Este é o Centro ou Cabeca de todas as criaturas, entende-se
que todas, inclusive os prlmeiros homens, Ihe sao devedoras da sua voca-
cao á vida eterna. A graca santificante, elevando o homem á filiacio
divina, é dita sobrenatural, pois ela ultrapassa as exigencias de qualquer
natureza criada.

A graca santificante era complementada pelos dons preternatural,...


dons que aperfeigoavam a natureza como tal ou sem a elevar a um
plano superior. Tais dons s§o cortamente dois: o poder nao morrer e a
imunidade de concupiscencia. Alguns teólogos, propondo sentenca plau-
sivel, enumeram outros dois: a imunidade de sofrimento e a ciencia
moral Infusa.

O poder nSo morrer n3o quer dlzer que, no estado do Justica ori
ginal, os primeiros homens seriam isentos da morte. Significa, porém, que
a morte nSo teiia o caráter de arranco doloroso que hoje Ihe toca. A
morte atualmente é o slnal da ruina e do despojamento com que o pecado
original afetou a natureza humana.

A Imunidade de concupiscencia tornava os afetos e instintos infe


riores do homem subordinados á sua razáo, de modo a criar harmonía
no ser humano.

A imunidade de sofrlmento é correlativa ao poder nSo morrer, visto


que os precursores da morte atualmente s5o dolorosos.

A ciencia moral Infusa nada tem que ver com saber técnico, mas
era táo somente a ilumlhacfio da mente dos prlmeiros homens, para que
pudessem responder, com plena consciéncia e responsabilidad©, ao apelo
de Deus significado pelo precedo paradisiaco.

Admltindo tais dons no estado original, a teología nfio apregoa deter


minado aspecto físico dos primeiros pais nem a existencia real do paraíso
terrestre. A doutrlna da fó se concilla perfeitamente com a imagem do
homem primitivo das cavernas.

410 —
A JUSTTCA ORIGINAL 15

Comentario: Nos últimos decenios, as condigóes em que


se achavam os primeiros pais do género humano tém sido
objeto de pesquisas e debates: a arqueología, a antropología,
a paleontología tém evidenciado que os primeiros homens
eram de configuracáo rudimentar e viviam precariamente ñas
cavernas. Isto vem abalando certas concepcóes (aparentemente
fundamentadas na Biblia) que apresentavam os primeiros pais
como seres de bela estatura e de grande riqueza espiritual.
Os próprios teólogos tém revisto certas teses a respeito da
chamada «justiga original» ou do relacionamento dos primeiros
homens com o Senhor Deus. Em conseqüéncia,

1) há aqueles que nada de especial admitem no tocante


áquele estado original. As descrigóes de Gn 1-3 nao se refe-
ririam ao passado do género humano, mas táo somente ao
futuro; nao seriam motivo de saudades, mas o objeto de
esperanga; seriam urna descrigáo do ideal a que os homens
deveráo chegar na medida em que se afastarem do pecado,...
pecado que entrou no mundo quase naturalmente, sem que
se deva dar importancia ao primeiro pecado. Entre outros,
parece defender tal tese o exegeta Oswald Loretz, cujo livro
«Criagáo e Mito» é comentado as pp. 405-409 deste fascículo;

2) há aqueles que, auscultando um pouco mais o magis


terio da Igreja e a voz da Tradigáo, admitem, sim, um estado
original singular, sem o qual nao se entendería a obra de
Cristo. Negando tal estado, o cristáo negaría um artigo de fé.

Em vista, destas hesitagóes, vamos, a seguir, elucidar o


que seja a justiga original, tal como a fé católica hoje a pro-
fessa, baseando-nos, sem dúvida, em dados do texto bíblico.
Antes, porém, de entrarmos na materia, proporemos tres obser-
vagóes.

1. Tres observasoes previas

1. No presente artigo nao abordaremos a questáo: «Poli-


genismo ou monogenismo?» É lícito, aos olhos da fé, admitir
que Adáo nao seja nome próprio no texto de Gn 1, mas signi
fique o homem como tal, visto que 'Adam em hebraico quer
dizer simplesmente homem. Por conseguinte, o texto bíblico
de Gn 1-3 refere-se ao homem ou aos primeiros homens ou
aínda aos primeiros pais, sem pretender definir se esses pri-

— 411 —
16 íPERGUNTE E RESPONDEREMOS* 238/1979

meiros antepassados eram em número de dois ou mais. Por


isto também falaremos, a seguir, de Adáo e do primeiro
homem sem tencionar dirimir as dúvidas relativas a polige-
nismo ou monogenismo. Qualquer que seja o número dos pri-
meiros homens, o relato bíblico conserva o seu pleno sentido,
pois afirma que os mesmos foram convidados por Deus á
filiagáo divina, mas preferiram dizer-lhe o Nao do pecado
(como se tenha dado esse pecado, é questáo que vai sumaria
mente abordada a p. 409 deste fascículo).

2. O tema sjustiga original» ou «relacionamento dos pri-


meiros homens com Deus» nao pode ser penetrado mediante
os criterios das ciencias naturais apenas, pois estas aínda
estáo á procura da estaca zero da historia do género humano.
Nem a filosofía, com seu método dedutivo, é suficiente para
tanto. Somente os documentos da fé dizem algo a respeito.

A S. Escritura (Gn 1-3), porém, que é precisamente urna


das fontes de informagáo para o fiel cristáo, nao pode ser
interpretada segundo criterios meramente literarios ou cien
tíficos, mas há de ser ilustrada também pelos pronunciamentos
da Tradigáo crista e do magisterio da Igreja sobre a justica
original; em caso contrario, nao se faria urna exegese com
pleta e auténtica do texto bíblico.

3. Seria contrario á doutrina da Escritura e da Igreja


entender Gn 2,4b-3,24 (o relato javista) 1 em sentido mera
mente simbólico. Estas primeiras páginas bíblicas referem um
acontecimento único, ocorrido nos inicios da historia humana.
Todavía a mensagem é religiosa; ela relata como o homem
se comportou frente a Deus, sem pretender ensinar qual o
estado físico das criaturas; por conseguinte, nao tem valor
literal a descrigáo do paraíso (jardim ameno banhado por
quatro rios), nem se pode dcduzir do texto bíblico qual o tipo
corpóreo dos primeiros pais; nada impede que estes tenham
sido de configuragáo primitiva. O que importa admitir, é que
tenham sido capazes de dialogar com Deus e de tomar urna
decisáo diante do Senhor. Para tanto, bastava que fossem
pessoas ou que fossem animados por urna alma espiritual.

Passemos agora ao exame da doutrina da fé referente ao


estado original.

i Javista é a designarse do documento que descreve a Justica ori


ginal e a queda dos primeiros pais.

— 412 —
A JUSTICA ORIGINAL 17

2. O estado original

A S. Escritura, interpretada pela Tradigáo e explicitada


auténticamente pelo magisterio da Igreja, atesta que os pri-
meiros pais foram dotados da graca santificante (sobrenatu
ral) e de dons preternaturais.>

Vejamos cada qual desses elementos de per si.

2.1. A graca santificante

1. É doutrina de fé que os primeiros homens foram


chamados á comunháo de vida com Deus ou á filiacáo divina
mediante a graga santificante. Como filho, o homem era her-
deiro da consumacáo escatológica ou da vocacáo a ver a
Deus face-a-face.

2. Esla afirmacáo tem grande importancia, pois significa


que, antes mesmo de qualquer decisáo da parte do homem,
este estava destinado a um fim sobrenatural. O pecado ou a
recusa proferida pelo homem a este designio de Deus nao
extinguiu a vocagáo do homem á ordem sobrenatural. Ainda
hoje Deus continua a considerar o homem sob a luz da ordem
sobrenatural a que Ele o chamou. O estado original é, por-
tanto, criterio permanente para se avallar a historia da sal-
va'^áo; ele nao se justapóe as outras fases da historia da sal-
vacáo no mesmo nivel, mas tem valor constitutivo. Nunca
existiu, nem existe, o estado de natureza pura ou a ordem
meramente natural, em que o homem seria considerado por
Deus simplesmente como animal racional (conceito filosófico),
nao destinado á visáo face-a-face decorrente da filiacáo divina.

3. Note-se também que a graga dos primeiros pais é a


própria graca de Cristo vindouro ou é a graca adquirida por
Cristo para os homens e antecipadamente outorgada aos pri
meiros pais. Esla assergáo decorre da doutrina bíblica sobre

1 Por sobrenatural entende-se o que está ácima ou além das exigen


cias de qualquer natureza criada. Asslm a participado na vida divina ou
a flliacfio divina é algo de estritamente sobrenatural.

Preternatural é o dom que prolonga as perfeicóes de determinada


natureza criada, sem, porém, elevar essa criatura a um plano superior.
É preternatural para o homem, por exemplo, o "poder nio morrer" ou o
"escapar a morte dolorosa".

— 413 _
18 sPERGUNTE E RESPONDEREMOS^. 238/1979

a criagáo em Cristo e do primado absoluto de Cristo sobre


todas as criaturas (cf. C\ 1,15-22; Jo 1,3; Hb 1,1-4). O pri-
meiro homem foi criado á imagem do Cristo vindouro; por
isto estava «em Cristo» ou era «membro de Cristo», conforme
a linguagem paulina; Cristo, na plenitude dos tempos, veio
ao mundo como imagem-modelo para restaurar e consumar
a imagem-cópia subvertida pelo pecado.

Se a graca de Adáo nao tivesse sido concedida por Cristo,


Jesús, como Salvador, teria entrado numa ordem de coisas
que haveria subsistido independentemente dele. Já nao seria
o absolutamente Primeiro, para o qual e por causa do qual
tudo teria sido criado.

Eis por que somente em Cristo se manifesta o auténtico


significado do estado original. A consumagáo da historia da
salvagáo revela o sentido dos respectivos primordios; o comeco
e a plenitude devem ser da mesma índole. Toda a historia
da salvagáo desde os seus inicios é dirigida por Cristo e para
Cristo; qualquer das suas etapas anterior a Cristo é prepara-
gáo para a vinda do Senhor.

4. Os primeiros pais possuiam a graga santificante, nao,


porém, de maneira definitiva, e, sim, como peregrinos. Deus
Ihes pediu que dissessem um Sim livre ao dom recebido, pois
Deus nao salva o homem scm o livre consentimento deste. A
situacáo de Adáo se distinguía da dos homens pós-adam ¡ticos
pelo fato de que as condigóes ñas quais se achava, eram isen-
tas da heranga da culpa original; eram, pois, de maior lucidez
da mente — o que tornava mais grave a culpa de Adáo.

Observamos agora que a graga santificante, nos primeiros


homens, implicava outrossim a posse dos dons preternaturais.
Estes, como se dirá abaixo, aperfeigoavam a natureza humana
em vista de urna opgáo que fosse significativa do próprio
homem.

2.2. Os dons preternaturais

A filiagáo divina, nos primeiros pais, era acompanhada


por dons preternaturais,... dons que aperfeigoavam a natu
reza humana como tal, de modo que o homem pudesse fazer
urna opgáo mais profunda e radical sem sofrer obstáculo ou

— 414 —
A JUSTICA ORIGINAL 19

de maneira mais livre e espontánea do que nos. A vontade


imprimiría o cunho da sua decisáo a todas as carnadas do
seu sujeito, fazendo destas um puro espelho de si mesma.
Assim os dons preternaturais criavam um clima propicio á
livre opcáo que Deus pedia ao homem.

Os dons preternaturais, segundo ciássico modo de definir,


eram quatro: a imortalidade (ou o poder nao morrer), a
integridad» (ou a imunidade de concupiscencia), a impassi-
bilidade (ou a ausencia de sofrimento), a ciencia moral infusa.
Hoje em día os teólogos nao insistem tanto sobre os dois
últimos; julgam, porém, que a isengáo de morte e a integridade
eram dons inerentes ao estado original.

Penetremos agora no sentido de cada qual dos referidos


dons.

2.2.1. A imortalidade (poder nao morrer)

A S. Escritura associa constantemente pecado e morte,


apresentando esta como conseqüéncia daquele; tenham-se em
vista os textos seguintes:

Gn 2,16s: "O Senhor Deus deu esta ordem ao homem: '... NSo
comas do fruto da árvore da ciencia do bem e do mal, porque no dia
em que o comeres, cortamente morreras'".

Gn 3,19: Após o pecado, dlsse o Senhor Deus ao homem: "Come


rás o pSo ao suor do teu rosto, até que voltes á térra donde foste tirado,
porque tu és pó e em pó te has de tornar".

Sb 2,23s: "Deus crlou o homem para a Imorialldade, e fé-lo á


Imagem da sua próprla natureza. Por Inveja do demonio é que a morte
entrou no mundo, e prová-la-So os que pertencem ao demonio".

Rm 5,12: "Assim como por um so homem entrou o pecado no


mundo e, pelo pecado, a morte, assim também a morte penetrou em todos
os homens, pols todos pecaram".

A propósito o magisterio da Igreja emitiu algumas decla-


racóes que, embora circunstanciadas pelas controversias pela-
giana (séc. V) e protestante (séc. XVI), conservam o seu
valor definitivo através dos tempos.

Assim o Concilio de Cartago XV (418) se pronunciou:

"Se alguém dlsser que AdSo, o primelro homem, fol criado mortal,
de modo que, independentemente do pecado, morreria corporalmente, isto

— 415 —
20 sPERGUNTE E RESPONDEREMOS* 238/1979

é, deixaria o corpo nSo por efeito do pecado, mas por necessldade natu
ral, seja anatema" (Denzinger-Schonmetzer, Enqulridlo dos Símbolos e
Delinees n? 222 [101]). >

No Concilio de Orange II (529) a Igreja declarou:

"Se alguém dlsser que a prevarlcacSo prejudlcou apenas AdSo, a


n9o a descendencia deste, ou se alguém disser que apenas a morte do
corpo (que é a pena do pecado), n§o, porém, o pecado (que é a morte
da alma), passou para todo o género humano mediante um so homem,
cometerá injustlca contra Deus e contradirá ao Apostólo, que afirma:
'Por um só homem o pecado entrou no mundo, e, pelo pecado, a morte;
desta maneira a morte passou para todos os homens, porque todos peca-
ram' {Rm 5,12)" (OS 372 [1751).

Em Trento (1545-1563), o Concilio ecuménico definiu :


"Se alguém nao confessar que o primeiro homem, AdSo, tendo
transgredido o mandamento de Deus no paraíso, (mediatamente perdeu a
santldade e a justica ñas quals fora constituido... e, por Isto, incorreu
na morte, que o Senhor Ihe propusera,... e se alguém nSo confessar que
AdSo, por efeito da sua prevaricacáo, fol atingido por males do corpo e
da alma, seja anatema" (DS 1511 [7881).

Os textos bíblicos e eclesiásticos atrás citados nao signi-


ficam que a morte nao seja um fenómeno natural. Do ponto
de vista biológico, é muito compreensivel que o ser humano
se desgaste e morra físicamente. O que a mensagem bíblica
significa, ó que no estado original a morte seria um fenómeno
tranquilo; o homem, guardando a amizade com Deus, teria a
vida... vida no sentido de salvagáo eterna; em conseqüéncia,
a cessagao das funcóes biológicas nao teria significado senáo
ncidental ou secundario. Após a queda original, a morte
ocorre com outra signifícagáo; é a expressáo da ruina, da
perda da salvacáo que o pecado acarretou para a humanidade;
conseqüentemente, ela tem também um aspecto doloroso, de
dilaceragño ou de arranco. Assim a morte física, como ela
ocorre, geralmente penosa, vem a ser imagem e sinal do afas-
tamento do homem rm relagáo a Deus. Sabe-so, alias, que a
morte física tem seus precursores, também angustiantes : as
molestias e enfermidades, o desgaste físico, o trabalho penoso...

Nao se poderia deixar de mencionar aqui o fato de que


Cristo quis assumir a morte do homem, dolorosa como é, a
fim de transfigurá-la, faendo da mesma um caminho de volta

1 Doravante citaremos o Enqulrldio mediante a sigla DS. Os números


entre cólcheles slgnlllcam o mesmo texto na edlcao do Enquirídio publicada
outrora aos cuidados de Oenzinger apenas.

— 416 —
A JUSTICA ORIGINAL 21

ao Pai. Assim a promessa divina de levar o homem á vida


nao foi ab-rogada. Ela é proposta de novo ao homem, nao
como fruto da «obediencia» do primeiro Adáo, mas como
resultado da imitagáo de Cristo, que se fez obediente até a
morte, a fim de transformar a morte em passagem para
a vida.

2.2.2. A ¡ntegridade (imunidade de concupiscencia)

A imunidade de concupiscencia significa a submissáo dos


impulsos da carne ao espirito do homem, espirito que, por sua
vez, se achava submisso a Deus. É, pois, a ausencia de ten
dencias sensuais opostas ao espirito e inclinadas ao mal; tal
ausencia devia-se ao dominio do espirito sobre a materia e,
em última análise, á sujeigáo do espirito a Deus.

A presenca desse dom nos primeiros pais é insinuada pelas


Escrituras, quando dizem que ambos, antes do pecado, esta-
vam ñus, mas nao experimentavam rubor por causa disto
(cf. Gn 2, 25); ao contrario, logo após o pecado, sentiram a
vergonha e se recobriram (cf. Gn 3,7). O magisterio da Igreja
pronunciou-se a respeito, como se depreende dos textos se-
guintes :

No Indiculo atribuido a S. Celestino I Papa (431 ?) lé-se:

"Pela prevaricado de Adáo todos os homens perderam a... ino


cencia original, de modo que ninguém se pode levantar do abismo daquela
ruina por sua próprla vonlade a nao ser que a graca de Deus misericor
dioso o soerga" (DS 239 [130]).

O Concilio de Orange II (529) declarou :

"A vonlade, enlraqueclda no primeiro homem, nSo pode ser restaurada


senSo pela graca do Batlsmo. O que o homem perdeu, nSo pode ser devol
vido sen3o por Aquele que o pode dar. Por Isto diz a próprla Verdade:
'Se o Fllho vos libertar, seréis realmente llvres'" (DS 383 [186]).

"Ninguém se pode salvar a nBo ser por misericordia de Deus. A


natureza humana, mesmo oue guardasse a integridade em que fora criada,
nfio perseverarla se o Criador nSo a ajudasse. Por Isto, se o homem sem
a graga de Deus nSo pode conservar a salvado que recebeu, como
poderá sem a graca de Deus reparar o que perdeu?" (DS 389 [192]).

Em 853 assim se exprimiu o Concilio de Quierzy (Gália):

"Pelo primeiro homem perdemos a liberdade de arbitrio, e por Cristo


nosso Senhor a recebemos de novo. Temos a liberdade para praticar o

— 417 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 238/1979

bem, prevenida e ajudada pela graga, e temos a liberdade para cometer


o mal, quando nao somos fortalecidos pela grasa. Temos, porém, o nosso
livre arbitrio, pois (ol libertado pela graca e, de corrupto que eia. sanado
pela graca" (DS 622 [317]).

Após o pecado, o homem senté que já nao é harmonioso


em suas tendencias, mas, ao contrario, traz impmsos antagó
nicos dentro de si, como adverte o próprio Apostólo :

"O bem que eu quero, nao o faco; mas, o mal que nlo quero, eu
o pratico... Sinto piazer na lei de Deus, de acordó com o homem interior.
Mas vejo outia lei nos meus memo.os, a lutar contra a lei da minha lazáo
e a reier-me cativo na lei do pecado, que se enconlra nos meus membros"
(Rm 7, 19-23).

A fé afirma, pois, que no estado original o homem thiha


a plena posse de si mesmo, de tal maneira que suas aspiragóes
superiores nao eram suplantadas por instintos inreriores. isto,
porém, nao quer dizer que o homem nao fosse livre para
escolher o mal: a sua vontade que, por especial dom de Deus,
optava pelo bem, conservava a faculdade de contradizer a
esse dom e optar pelo mal.

2.2.3. Impassibilidade e ciencia

Estes dois dons sao objeto de controversia por parte dos


teólogos modernos. Assim, por exemplo, Wolfgang Seibel os
rejeita em «Mysterium Salutis» in/2, p. 259. A Tradicáo, ao
contrario, os afirma, embora tenha exagerado o seu alcance.

Pode-se dizer que os primeiros pais possuiam também esses


dois dons no sentido seguinte:

A impassibilidade ou a ausencia de sofrimento ó corolario


da isencáo da morte dolorosa ou da ruina, que o homem des-
frutava no paraíso. A morte está naturalmente associada a
sofrimentos e dores. Ora, dispensados da morte-ruina, os pri
meiros pais estavam tambóm dispensados dos precursores do
lorosos da mesma. Isto ó insinuado pelo texto bíblico, quando
propóe, como conseqüéncias do pecado, os espinhos e abro-
lhos, o trabalho penoso («ao suor da fronte»; cf. Gn 3, 17-16)
e o parto doloroso (= as fungóes da maternidade dolorosas).
Em outros termos, quer dizer o texto sagrado: o homem e a
mulher nao cumprir¡am a respectiva missáo senáo através de
sacrificios e lutas.

— 41S —
A JUSTICA ORIGINAL 33

Quanto ao dom da ciencia, nada significa na linha do


saber científico ou técnico, mas tinha significado exclusiva
mente moral. Consistía, sim, na iluminagáo, comunicada pelo
Senhor Deus ao homem, para que este optasse conscientemente
diante do modelo de vida proposto pelo Criador; a decisáo do
homem assim tomada seria representativa do próprio homem.

2.2.4. Questóo ulterior

O Batismo aplica ao homem os efeitos da Reden;áo, ou


seja, restitui-lhe a filiacáo divina mediante a graga santifi
cante. Ora, se esta é a causa dos dons pretematurais, por
que nao sao estes devolvidos ao homem por ocasiáo do Batismo?

Respondemos que os dons pretematurais seráo restituidos


ao ser humano quando estiver completo o seu Batismo ou
a sua Redengáo. Com efeito; um dia o homem alcancará a
bem-aventurada liberdade dos filhos de Deus (= a integri-
dade, a imunidade da concupiscencia desordenada) e a plena
posse da vida (= imortalidade). A diferenca entre o homem
no estado original e o homem hoje, após o pecado dos pri-
meiros pais, consiste em que no paraíso o ser humano con
seguiría ser confirmado na graca e na santidade após urna
decisáo cabal e definitiva, ao passo que hoje ele caminha para
o mesmo objetivo através da lenta superagáo dos obstáculos
que se opóem á graga durante a sua peregrinacáo terrestre.

O conteúdo deste artigo foi concebido com complemento á


apreciacáo do livro de Oswaldo Loretz publicada as pp. 405-409
deste fascículo.

A propósito :

COTHNET, E., Paradis, ln Dlctlonnahe de la Blblo. Supplément VI 1960,


1177-1220.

FEINER, J. —LOEHRER, M., Myslertum Salutls II/2. Ed. Vozes. Pe-


trópolis 1972, pp. 241-263.

LABOURDETTE, M.-M., Le peché origlnel et les origines de l'homme.


París 1053.

MICHEL, A., Justlce orlglnelte, in Dictiormaho de Théologle Cathollque


VI11/ 2, 1925, 2020-2042.

SCHMAUS, M., Das Paradles. MQnchen 1965.

ÍDEM, A Fé da Igreja, vol. 2. Ed. Vozes, Petrópolis 1976.

— 419 —
Um sociólogo fala sobre

"manicomios, prisoes e conventos"


(Erving Goífman)

Em sintese: O livro "Manicomios. Prisóes e Conventos" de Erving


Gofíman reúne as tres instituicdes em pauta sob o rótulo de "instituicóes
totais": seriam ambientes em que os cidadáos dormem, trabalham e tém
suas recreagóes nos mesmos horarios, segundo o mesmo planejamento e
sob as mesmas autoridades, ao invés do que acontece com os demais
homens. Goffman julga que tais ambientes despersonalizam, humllhando e
ridlcularizando os Individuos sujeitos a tal regime.

Infelizmente, o autor, que é sociólogo, refere-se aos conventos e


mosteiros com exiguo conhecimento de causa; da imensa bibliografía ati
nente á vida claustral cita apenas tres obras; das Regras religiosas cita
uma só — a de S3o Bento —, escrita no séc. VI segundo as categorías
culturáis daquela época.

Na verdado, entre manicomios e prlsfies, de um lado, e conventos,


do outro lado, exlstem dlferencas essenclals: as clínicas e os cárceres
nSo corresponden! a algum ideal de vida nem a uma llvre escolha por parte
dos seus internos, ao passo que a vida religiosa regular é a expressSo
de um ideal livremente abracado. Enquanto nos manicomios e cárceres o
cldadáo alimenta a aversáo ou o ódto á InstltuIcSo, na vida claustral o (a)
Religioso (a) se fixa por amor.

Nao há dúvida, o amor a Deus e ao próximo que anima o (a) Reli


gioso (a), exige mortificacSo e renuncia. As manlfestacóes dessa peni
tencia tém variado no decorrer dos séculos. Nem todas as que outrora
eram pratlcadas, sSo hoja compreensiveis; por isto varias délas vem
sendo substituidas por oulras.

Nao se pode negar que nem sempre o(a)s Religioso(a)s contribul-


ram para abrilhantar o ideal da vida consagrada; foram, ás vezes, vltlm'as
da fraqueza humana — o qué nSo Invalida a grandeza singular e nobilitante
da vida conventual.

Comentario: Erving Goffman é cientista social, profes-


sor da Universidade da California em Berkeley, tendo varias
obras publicadas. Do outono de 1954 ao fim de 1957, dedi-
cou-se ao estudo do comportamento de pacientes internados
em enfermarías nos Institutos Nacionais do Centro Clínico de
Saúde. De modo especial, em 1955-56 fez um trabalho de

— 420 —
«MANICOMIOS, PRISÓES E CONVENTOS» _ _25

campo no Hospital Saint-Elizabeth, Washington, D. C, insti-


tuigáo federal com um pouco mais de 7.000 internados; foi
assim chegando a conclusóes que foram redigidas nos anos
subseqücntes e publicadas no livro Asylums. Essays on the
social situation of mental patients and other inmates (1961).
Esta obra foi finalmente traduzida para o portugués e edi
tada em 1971 com o titulo : Manicomios, prisoes e conventos
(Ed. Perspectiva S. A., Sao Paulo 1974).

Ora tal escrito tem sido adotado últimamente em cursos


superiores, disseminando idéias erróneas a respeito da vida
conventual. Este efeito nocivo comega a ser desencadeado pelo
titulo mesmo do livro, titulo que excede um tanto o conteúdo
do original inglés, como veremos adiante. — Vamos, a seguir,
resumir alguns tragos da obra e propor breves comentarios
aos mesmos.

1. O conteúdo do livro

O livro consta de quatro artigos ou ensaios, que podem


ser lidos isoladamente. Somente o primeiro, intitulado «As
características das instituigóes totais», entra propriamente em
assuntos de Vida Religiosa; os demais versam apenas sobre
doentes mentáis e hospitais. Ora, temos em vista abordar táo
somente os aspectos do livros atinentes á fé e aos conventos;
eis por que nos limitaremos á consideragáo do primeiro ensaio
da obra (pp. 13-108).

O autor entende por instituicáo total «um local de resi


dencia e trabalho onde grande número de individuos, com
situacáo semelhante,... levam vida fechada e formalmente
administrada» (p. 11). Seriam exemplos disto as prisóes, os
campos de concentragáo, os hospitais, os manicomios, os con
ventos (í). O que, segundo o autor, essas instituigóes tém em
comum, é o regime de internato e fechamento,... fechamento
que as vezes é manifestado por portas trancadas, paredes altas,
árame farpado, pantanos...

Mais explícitamente observa Goffman: o cidadáo normal


tende a habitar, trabalhar e divertir-se em lugares diferentes,
com diferentes co-participantes, sob diferentes autoridades e
sem planejamento geral. Ora ñas instituigSes totais o individuo
habita, trabalha e tem suas recreagóes no mesmo local, sob
urna única autoridade, na companhia das mesmas pessoas
(todas elas obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto),

— 421 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 238/1979

dentro de horarios rigorosamente pré-estabelecidos, segundo


planejamento tragado por um grupo de dirigentes autoritarios.
Estes nao estáo sujeitos a internato; trabalham apenas oito
horas por dia na instituigáo.

Geralmente os individuos sujeitos ao internato tendem


a ver os memoros da equ(pe dirigente como arbitrarios e mes-
quinhos, ao passo que estes véem seus subalternos como amar-
gurados e nao merecedores de confianga. Via de regra, os
individuos internados nao tém conhecimento das decisóes dos
dirigentes que lhes dizcm rcspcito: o soldado ignora o des
tino da sua viagem; o médico oculta o diagnóstico ao paciente;
o doente mental é tratado como crianga...

Conceituada a instituigáo total, Goffman passa a apontar


alguns dos absurdos (reais ou aparentes) da vida que ai é
levada.

O que mais lhe chama a aten^áo, sao as diversas formas


de humilhacáo, rebaixamento, padronizagáo e despersonaliza-
gáo dos individuos internados.

Por exemplo, o uso do uniforme, geralmente imposto


desde que o individuo entre numa instituigáo total, contribuí
para apagar muitas das características próprins de cada pes-
soa; cada qual assim esquece um pouco ou muito do seu pas-
sado e dispóe-se a assimilar melhor o novo mundo uniforme
em que entra. Goffman nao hesita em citar, a respeito, a
Regra de Sao Bento, que lhe parece contribuir para a des-
figuragáo dos monges quando manda :

"Seja o novico, no oratorio, despido de suas roupas e vestido com


as do mosteiro. As vestes que despiu, sejam colocadas num armarlo e
al guardadas para que, se por acaso (o que Deus nfio permita) algum
dia for convencido pelo demonio a abandonar o mosteiro, possa deixar
as vestes do mosteiro e Ir embora" (c. 58).

O individuo internado numa instituigáo total costuma ser


despojado de seus bens materiais ; nada pode guardar nem
ganhar para si. Os objetos que ele usa, sao distribuidos pelas
autoridades e iguais aos dos colegas; vém caracterizados como
próprios da instituigáo fechada, cujas iniciáis e emblemas
eles trazem. Para receber novo lápis, a pessoa pode ser obri-
gada a devolver os restos do lápis gasto. De vez em quando,
as autoridades inspeccionam os leitos e os equipamentos pró
prios de cada interno, á procura de algum eventual objeto
ilícito; ora isto desfigura as pessoas. A propósito Goffman cita

— 422 —
■..MANICOMIOS. PRISOES E CONVENTOS» 27

mais urna vez a Regra de Sao Bento, que, escrita no século VI,
prescreve o seguinte:

"Para dormir, os monges devem ter apenas um colchSo, um cobertor,


urna colcha e um travesseiro. Essas camas devem ser freqüentemente
examinadas pelo abade, por causa de proprledade particular que poderla
ai estar guardada. Se alguém for descoberto com algo que nao tenha
recebido do abade, deverá ser severamente castigado. E, para que esse
vicio da propriedade particular possa ser completamente eliminado, todas
as coisas necessárias devem ser dadas pelo abade: capuz, túnica, meias,
sapatos, cinto, faca, cañeta, agulha, lenco e tabúlelas para a escrita.
Assim será possfvel eliminar todas as queixas de necessidade. No entanto,
considere sempre o abado aquela sentenga dos Atos dos Apostólos que
diz: 'Dava-se a cada um de acordó com as suas necessldades' (4,35)".

Até mesmo o nome do individuo internado é substituido


por um número ou por um apelido (por vezes pungente ou
ofensivo).

O autor se refere outrossim a tratamentos duros, aviltan-


tes, punitivos..., que humilham as personalidades: espanca-
mentos, choques elétricos, prostragóes, penitencias como bei-
jar os pés e outras... sao impostas aos internos das institui-
cóes fechadas. Goffman nao deixa de citar de novo a Regra
de Sao Bento, que prescreve:

"O monga excomungado fique prostrado diante das portas do ora


torio, cm silencio; com a taco no chao e o corpo eslondido, deve perma
necer aos pés de todos os quo saem do oratorio" (c. 44).

Aos internados podem-se pedir servigos depreciativos como


os da cozinha. E mais urna vez é mencionada a Regra de Sao
Bento, que, cm seu capítulo 35, prevé que os monges traba-
Ihem na cozinha e sirvam aos seus irmáos no refeitório.

Existem também, ñas instituicóes fechadas, práticas de


autoacusagáo ou de confissáo pública de faltas pessoais. Eis
como Goffman entende este costume:

"Na medida em que o estabeleclmenlo espera, oficialmente, alterar


as tendencias auto-reguladoras do Internado, pode haver confissSo Indivi
dual ou de grupo — psiquiátrica, política, militar ou religiosa — de acordó
com o tipo da instltulcáo. Nessas ocaslóes, o Internado precisa expor a
novos tipos de audiencias fatos e sentimentos sobre o eu. Os exemplos
mais espetaculares dessa exposlgáo nos s3o dados pelos campos comu
nistas de confissáo e petas sessoes de mea culpa que constituem parte
da rotlna das InstltuIcSes católicas religiosas" (p. 31).

Enumerando este e varios outros costumes das institui-


góes totais, o autor se vale do livro de Kathryn Hulme inti
tulado «The Nun's Story» (Historia de urna freirá), publi-

— 423 —
??.... «PERGUNTE E RESPONDEREMOS-- 238/1979

cado em 1956 e traduzido para o portugués em 1959 com o


titulo «Entre Dois Mundos» (Ed. Agir). Essa obra refere os
dados biográficos e o drama intimo de urna Religiosa belga
chamada Gabrielle Van Der Mal (no convento, Ir. Lucas).
Após dezesseis anos de vida regular, essa Irma se julgou im-
possibilitada de continuar na Congregado e obteve a dispensa
dos votos, voltando entáo para o século. Em 1945 contou sua
historia religiosa á escritora norte-americana Kathryn Hulme,
que, onze anos mais tarde, apresentou ao público o drama de
Gabrielle sob forma de biografía dita «The Nun's Story». Este
livro, a primeira vista, dá a impressáo de que a vida religiosa
conventual é estereotipada, reduzindo-se a urna serie de obser
vancias destituidas de espirito.
As páginas de Goffman sao extremamente vivazes e pun
gentes na medida em que tentam descrever os costumes das
instituigóes fechadas; sem discernimento, fazem o leitor passar
dos hospitais para os manicomios, para as prisóes, para os
campos de concentragáo, para os quarteis e... para os mos-
teiros e conventos, como se esses diversos ambientes pudessetn
todos ser nivelados entre si.
Nao nos deteremos em citar ulteriores passagens em que
o sociólogo pretende retratar tais instituigóes. O que até aqui
foi dito, é suficiente para so perceber o ponto de vista do
autor : tenciona censurar ou mcsmo condenar os mostciros o
conventos como pretensas fontes de despersonalizagáo, a se-
melhanga do que sao as prisóes, os campos de concentragáo e
outros ambientes...

Esta tese sugere

2. Algumas pondera;oes

Cinco sao as observacóes que nos ocorre propor ao livro


de Erving Goffman :

2.1. Titulo e conleúdo

O título, mencionando em seqüéncia manicomios, prisoes o


conventos, corresponde melhor ao primeiro ensaio (pp. 13-108)
do que aos restantes do livro (pp. 109-312). Somente a terca
parte deste, aproximadamente, aborda cá e lá a vida conven
tual. Goffman, na verdade, pouco se refere aos conventos
(todavía as suas poucas referencias indicam suficientemente
o seu pensamento).

— 424 —
^MANICOMIOS, PRISOES E CONVENTOS.. 29

O autor, no prefacio (pp. 7-&), diz ter feito estágio em


hospitais para poder escrever a respeito. Pergunta-se, porém:
fez também estágio em conventos ou mosteiros para ter con-
digóes de comentar a vida regular? Tem experiencia para
dissertar sobre tais instítuicóes? Da vasta bibliografía sobre
a vida conventual, cita apenas urna Regra — a de Sao Bento
(séc. VI) l — e tres comentarios: «The Seven Storey Moun-
tain» (A montanha dos sete patamares) de Thomas Merton",
«A Right to be Merry» (Um direito de ser feliz) de Sisler
Mary Francis P. C.:i, «The Nun's Story» de Kathryn Hulme ',
ao passo que sobre psiquiatría e sociología sao muito nume
rosos os livros aduzidos por Goffman. Dir-se-ia, pois, que
este autor carece de noyóes adequadas e, por conseguinte, de
autoridade para julgar a vida religiosa regular; as suas afir-
macóes a respeito sao as de quem nao conhece suficientemente
o tema que aborda.

2.2. Vida Religiosa : sentido e ideal

Sem dificuldade, vé-se quáo erróneo seja nivelar manico


mios, prisóes e conventos. Com efeito; a vida em hospital,
clínica e prisáo nao corresponde a algum ideal, mas, ao con
trario, opóe-se a todo ideal; via de regra, ninguém está em
manicomio ou cárcerc por livre escolha. Quanto á vida reli
giosa regular, é essencialmente a realizagáo de um ideal; cor
responde a urna livre opgáo. Ninguém professa definitivamente
urna Regra religiosa senáo depois de alguns anos de expe
riencia (postulantado, noviciado, júniora to...); o(a) candi
dato (a) ao convento deve primeiramente examinar os termos
concretos da vida regular, com tudo que ela tenha de renun
cia e mortificacáo. Caso decida finalmente emitir seus votos
religiosos, fá-lo com toda a liberdade, numa auténtica afir-
magáo de sua personalidade; a vivencia conventual que decorre
dessa livre escolha ou da profissáo religiosa, nao é senáo a
reafirmagáo constante da liberdade do (a) Religioso (a); mesmo
quando renuncia e se mortifica, o (a) Religioso (a) reafirma
a sua livre opgáo inicial e fortalece o seu caráter. A Vida
Religiosa, assim entendida, vem a ser urna escola de formagáo

' Cf. p. 28 (cap. 55), p. 29 (cap. 58), p 30 (cap. 44), p. 83


(cap. 66). p. 104 (cap. 2), p. 105 (cap. 63), p. 106 (cap. 57), p. 164
(cap. 45).
*Cf. pp. 27. 48. 204.
'Cf. pp. 82. 83.
•Cf. pp. 31. 37. 38. 40. 44. 51. 105.

— 425 —
30 cPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 238/1979

e enobrecimento das pessoas. Especialmente nos últimos tem-


pos, os Institutos religiosos tém procurado submeter seus can
didatos a testes de saúde física e psíquica, de modo a só
receber pessoas sadias tanto no plano somático como no psí
quico. Mais do que nunca, em nossos días acentua-se a neces-
sidade de urna opcáo consciente e livre para que alguém abrace
a vida religiosa regular.

Com outras palavras: o que fixa determinada pessoa numa


comunidade religiosa, sao vínculos moráis (válidos para per
sonalidades fortes e bem formadas) e nao vínculos físicos ou
policiais (estes existem ñas prisóes, nos campos de concentra-
gáo e nos manicomios). É a consciéncia moral intima que
leva o (a) Religioso (a) a cumprir os deveres de sua Regra,
e nao alguma autoridade ou forga coercitiva extrínseca. Em
outros termos: é a convicgáo de que vale a pena dar-se total
mente a Deus ou ao Bem Infinito, com renuncia a bens tran
sitorios e ao egoísmo.

Equivalentemente, diremos : o (a) Religioso (a) entra no


convento, e ai permanece, por amor:... amor a Deus e ao
próximo *; tem, pois, a mais nobre das motivagóes para jus
tificar a sua vida. No dia em que esse amor arrefega, o (a)
Religioso (a) entra cm crise e ó propenso a pedir dispensa
dos votos. Pode-se, pois, comparar a vinculagáo dos Religiosos
a vinculagáo que une os cónjuges entre si; há, sim, um para
lelo entre a fidelidade dos Religiosos á sua Regra e a fideli-
dade dos cónjuges ao seu matrimonio. Assim como os esposos,
para ser fiéis ao seu amor e ao casamento, tém que saber
renunciar, um pouco ou muito, a si mesmos e adaptar-se a
um tipo de vida comum ou «con-jugal» 2, também os Religiosos,
para ser fiéis ao seu ideal de doagáo incondicional, tém que
renunciar aos particularismos e adaptar-se á Regra de vida
comunitaria ou conventual que professam. Ou ainda: assim
como o grande dinamo da vida matrimonial é o amor, a grande
forga propulsora da observancia religiosa é também o amor.

1 Mesmo os Religiosos de vida dita "contemplativa" ou de estrlta


clausura exercitam o seu amor ao próximo pelo fato de se identificarem
mais e mais com Cristo; mediante a comunhao dos santos, contrlbuem
para a salvacáo dos seus limaos. Dizla muito apropiadamente Elizabeth
Leseur: "Urna alma que se eleva, eleva o mundo Inteiro".

2A palavra "con-jugal" Incluí o vocábulo Jugo,... jugo que os


esposos assumem com plena llberdade e amor profundo, porque véem
nisto um bem ou a reallzacáo das respectivas personalidades.

— 426 —
«MANICOMIOS. PRISOES E CONVENTOS* 31

Quem tenha consciéncia disto, jamáis caira na aberragáo


de comparar os conventos com manicomios e prisóes !...
Nestas duas últimas instituigóes as pessoas se acham geral-
mente contrariadas e coagidas — o que nelas provoca aversáo
ou mesmo odio ao seu regime de internato. A doenga mental
e o crime é que explicam a existencia de tais estabelecimentos,
nos quais a violencia encontra um clima propicio. Ao contrario,
no convento ninguém permanece senáo porque o quer,... e
o quer em virtude de amor a Deus e ao próximo.

Impóe-se agora urna palavra sobre

2.3. As expressóes culturáis do ideal monástico-conventual

Diziamos que a Vida Religiosa é essencialmente o cultivo


do amor a Deus e aos irmáos, que procura libertar-se de todo
entrave das paixóes desregradas e do egoísmo. Em conse-
qüéncia, compreende-se que, para favorecer este ideal, naja
ñas comunidades religiosas um regime de ascese ou mortifi-
cagáo, regime caracterizado preponderantemente pelos votos
de pobreza, castidade e obediencia.

A pobreza voluntaria é um valor que liberta o cristáo do


apego aos bens materiais e Ihe dilata o coragio para se entre
gar ao próximo e aspirar aos bens definitivos.

A castidade ou o celibato consagrado isenta o (a) Reli


gioso (a) de preocupagóes com a sua familia, a fim de qué
possa voltar-se mais desimpedidamente para Deus e servir a
muitas familias, procurando amar, como irmáo(á), a todos os
homens.

A obediencia voluntaria é a renuncia ao individualismo


que atrofia a personalidade. Sendo voluntariamente escolhida,
a obediencia religiosa nao despersonaliza o cristáo, mas, ao
contrario, oferece-lhe a ocasiáo de cultivar continuamente os
valores de seu caráter e de sua vontade firme.

Dito isto, deve-se reconhecer que as expressóes da ascese


religiosa tém variado através dos séculos, assumindo outrora
formas que hoje parecem despropositadas.

Assim, por exemplo, no sáculo VI a Regra de Sao Bento


prescrevia o recurso a pancadas (cf. cap. 23. 28. 30), a jejuns
(cf. cap. 30), a prostragóes (cf. cap. 44)...; tais procedi-
mentos eram usuais e compreensíveis naquela época; enquadra-

— 427 —
32 ^PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 238/1979

vam-se tranquilamente ñas categorías culturáis da populacáo


romana mesclada de godos em meio aos quais se fundavam
mosteiros. Essas práticas punitivas durante sáculos continua-
ram em vigor ñas comunidades religosas (beneditinas e nao
beneditinas), porque condizentes com as linhas culturáis de
épocas passadas. É preciso, porém, diferenciar tais costumes
daqueles que ocorrem ñas prisóes, nos campos de concentra-
cáo e em instituicóes semelhantes: nestas o sadismo e o me-
nosprezo sarcástico muitas vezes imperam; os chefes tém,
nao raro, o prazer de humilhar e espezinhar os seus subalternos
(como minuciosamente refere Goffman). Ao contrario, ñas
comunidades religiosas (salvo possíveis excegóes, devidas á
fragilidade humana), a intengáo da Regra e dos Superiores
era a de ajudar os irmáos a vencer as paixóes e habilitar-se
a um amor mais livre e generoso. Apraz citar, por exemplo,
o abade Armand Jean Le Bouthillier de Raneé, que, no sé-
culo XVH, restaurou a Ordem de Cister no Mosteiro de Nossa
Senhora da Trapa, incutindo-lhe a observancia literal da
Regra de Sao Bento; era homem de ardente zelo religioso,
que se caracterizava por extrema severidade para com os
monges... O seu rigor é explicado pelos escritos e cartas que
deixou e nos quais revela grande amor aos irmáos. — Ao es
tudioso moderno compete nao considerar apenas as práticas
de mortificacáo dos antepassados, mas levar em conta tam-
bém as intencóes e o ánimo que as inspiraram; verificará
entáo que diferem radicalmente de todos os tratamentos infli
gidos aos internos de prisóes e manicomios.

Em particular sobre a confissáo de faltas pessoais, note-se


que nos campos de concentragáo esta prática pode fazer parte
do processo de lavagem de cránio intencionada pelas autori
dades do campo. Nos mosteiros e conventos, o seu significado
é totalmente outro: ela tem por objeto táo somente falhas
de foro externo, ou seja, infracóes á observancia regular (fal
tas contra o silencio, contra a pobreza, contra a pontualida-
de...); tal confissáo é inspirada pela humildade e pelo désejo
de reparacáo pública que cada Religioso deve á sua comuni-
dade. Em nossos dias, esta prática, também chamada capítulo
de culpas, é menos usual do que outrora.

De resto, hoje em dia, sendo outras as expressóes da


cultura contemporánea, o ideal de renuncia e doacáo dos mon
ges e Religiosos manifesta-se de maneiras diferentes das dos
antigos. A Igreja incute novas formas de mortificacáo, em
substituicáo a algumas daquelas que perderam o seu signifi-

— 428 —
.MANICOMIOS, PRISOES E CONVENTOS-' 33

cado em nossos dias. Nao se podem, portante, julgar os qua-


dros da vida monástica ou da Vida Religiosa hoje por aquilo
que está escrito na Regra de Sao Bento (datada do século VI)1.

As práticas punitivas e ascéticas, na Vida Religiosa, sao


meios, e nao fins; por conseguinte, tém valor nao como tais,
mas táo somente na medida em que contribuam para fazer
crescer nos Religiosos o amor a Deus e ao próximo. O mesmo
nao se diga dos campos de concentragáo, das prisóes e de
instituigóes congéneres, onde há a intengáo de degradar os
súditos por antipatía e odio.
Convém ainda acenar á

2.4. Froqueza humana

Como dito, a fraqueza humana, no decorrer dos tempos,


pode ter concorrido para deturpar certas instituigóes, valiosas
em si, da Vida Religiosa. Houve (e poderá haver sempre)
Superiores prepotentes, que, por seu autoritarismo arbitrario,
obscurecerán! (e obscureceráo) o ideal da observancia reli
giosa. Tais pessoas e seus feitos nao sao auténticos espécimens
da vida regular; por conseguinte, nao háo de ser tomados
como padrees para se avaliarem conventos e mosteiros.

O Concilio do Vaticano II promulgou o decreto «Perfectae


Caritatis» sobre a Vida Religiosa, no qual chama a atengáo
para a obediencia religiosa e o papel dos Superiores no caso.
Verifica-se, através desse texto, que é precisamente intengáo
da Igi'oja evitar que ocorram ñas comunidades religiosas os
abusos que Goffman denuncia em seu livro. Eis a passagem
que mais vem a propósito:
"Os Superiores... revelem-se dócels a vontade de Deus no exer-
cício do cargo. Em espirito de servido exercam a autoridade em favor dos
¡rmaos, de forma a oxprimirem a carldade pela qual Deus os ama. Dlrljam
os súditos como filhos de Deus e com respelto á pessoa humana...
Levem os colmaos a cooperaren! com obediencia ativa e responsável ñas
tarefas a cumprlr e iniciativas a tomar. Os Superiores escutem, pols, de
boa vontade os confrades, e promovam igualmente sua cooperaefio para
o bem do instituto e da Igreja" (n? 14).

Merece, especial atengáo nesta passagem a recomendacáo


de respeito -á pessoa humana.

1 Alias, é curioso que, dentre as numerosas Regras e ConstltuicSes de


familias religiosas, Goffman cite apenas a Regra de Sño Bento (séc. VI).
Parece nSo conhecer documento algum de época posterior ou dos tem
pos recentes.

— 429 —
34 <:PERGUNTE E RESPONDEREMOS- 238/1979

Notemos, alias, que nao somente os Superiores podem


contribuir para desfigurar o ideal da vida regular; também
os simples Religiosos, na medida em que arrefe;am em seu
entusiasmo, sao capazes de dar lamentável contra-testemunho.

Por último, interessa ainda considerar de mais perto

2.5. A bibliografía de E. Goffman

Como já observamos, o autor do livro pretende caracteri


zar os conventos ou a Vida Religiosa na base de exiguos conhe-
cimentos do assunto. Sao quatro apenas as obras que a pro
pósito Goffman cita:

a) A Regra de Sáb Bento (séc. VI), cujo teor literal nao


pode ser totalmente posto em prática no sáculo XX, pois as
expressóes culturáis sao hoje bem diversas das de outrora.
A Santa Regra, porém, deu extraordinarios frutos nao so no
campo religioso e eclesial, mas também na historia da civilí-
zacáo ocidental. Por isto Sao Bento, mediante os seus mostei-
ros, mereceu o título de «Patriarca do Ocidente». O espirito
que vivifica a sua R?gra, ainda hoje ó de grande aUiandadé,
pois é o espirito da discrigáo ou do discernimento, que leva
a distinguir em tudo o essencial e o acidental; foi justamente
a característica da discricáo que permitiu á Regra beneditina
atravessar os séculos até hoje, guardando os valores essen-
ciais da vida consagrada a Deus e trocando sucessivamente as
expressóes acidentais dos mesmos, de acordó com a evolugáo
dos tempos.

Poucos livros sao táo beneméritos na historia do Ocidente


quanto a Regra de Sao Bento devidamente entendida. Foi ela
que formou geracóes e geracóes de cristáos corajosos e cultos.

b) Thomas Mcrton, em sua obra «The Seven Storey


Mountain «(New York 1948), é citado tres vezes por Goffman.
Ora tal autor é um dos mestres da espiritualidade monástica
de nossos tempos. Procedente do agnosticismo esquerdista,
Merton fez-se católico e, finalmente, monge trapista nos Es
tados Unidos. Os seus escritos sao urna apología do mona
quisino e da vida consagrada para o homem do século XX.
Goffman, ás pp. 47 e 48, cita urna passagom de Merton que
apresenta a mortificacáo crista como condigno de vida mística.
Ora Erving Goffman parece nao entender que, para descobrir
mais plenamente a Deus, o ser humano se deve purificar de
paixóes e afetos desregrados. Quanto ás referencias que o

— 430 —
«MANICOMIOS, PRISOES E CONVENTOS» _35

sociólogo faz a Merton ñas pp. 27 e 204, sao lacónicas e


pouco significativas.

c) Sister Mary Francis P. C, em «The Right to be


Merry», também é citada por Goffman ás pp. 82 e 83. Os
dois trechos aduzidos afirmam que o valor do trabalho, diante
de Deus, nao consiste na Iucratividade do mesmo, mas, sim,
no grau de amor que anima a quem trabalha; urna obra
modesta, como varrer ou costurar, pode ser altamente pre
ciosa, aos olhos da fé, se realizada numa atitude de amor a
Deus e ao próximo. — Ora tais proposicóes sao plenamente
válidas numa perspectiva crista. Goffman talvez nao com-
preenda devidamente tal julgamento; este poderia ser precaria
consolagáo para as Religiosas que, vivendo em clausura, nao
se dedicam a obras vistosas e aparatosas! Todavía, á luz da
fé, mais vale o ser do que o ter, ou seja, mais vale identifi-
car-se com a vontade de Deus em coisas pequeñas do que pro-
duzir grandes coisas sem adesáo ao Senhor.

d) O livro «The Nun's Story» de Kathryn Hulme tam


bém é citado por Goffman... Esta obra narra as peripecias
de urna ex-Religiosa belga durante os seus dezesseis anos de
vida consagrada. É pungente e satírica. Reduz a Vida Reli
giosa a urna serie de observancias destituidas de espirito; as
Regras, em vez de fomentar a expansáo do amor e o desen-
volvimento das personalidades, seriam motivo de depaupera-
mentó interior. Os Superiores Religiosos, através do livro, apa-
recem como pessoas que por suas ordens mortificam os súdi-
tos de maneira arbitraria, sem procurar averiguar se seus
preceitos estáo ou nao adaptados ás circunstancias próprias
de cada caso.
O livro logrou sucesso extraordinario, atingindo a tiragem
de tres milhóes de exemplares nos Estados Unidos; foi tradu-
zido para treze idiomas. Por conseguinte, também foi muitc
analisado pelos críticos. Ora comentaristas de bom nome jul-
garam que a escritora Kathryn Hulme «estilizou» a sua nar-
racáo, exagerando alguns tragos do «formalismo» da Vida
Religiosa, e omitindo outros, que os contrabalancariam; de-
sejosa de fazer critica consuntiva a falhas que realmente
ocorrem entre Religiosos, K. Hulme teria, antes, produzido
urna caricatura da vida consagrada. Sao estas as palavras de
H. Holstein na revista «Etudes», dezembro de 1957, p. 427:
"O lluro é perturbador pelo quadro que ele oferece da Vida Reli
giosa. Exato na aparéncla, mas falso no fundo; materialmente verosslmll,
a obra, na verdade, faz caricatura. Pois a Vida Religiosa que ela apre-

— 431 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 238/1979

senta, é demasiado carente de olma: observancia perfectamente correta.


mas destituida de interlorldade...

Se tal é a Vida Religiosa, se o culto da Regra póe de lado a carl-


dade evangélica, compreende-se bem que a Irmfi Lucas n3o a tenha podido
sustentar. Mas compreende-se menos bem que ela tenha sustentado dezes-
seis anos... Ora justamente recuso-me a aceitar esse quadro da Vida
Religiosa. Rejeito-o, porque nao é cristSo. Nao me venham dizer que as
coisas em tal ou tal CongregagSo nao se apresentam táo esteréis e
formalistas. Tenho certeza de que em parte alguma as coisas se dáo como
o livro as descreve".

Na verdade, cada um dos quadros particulai'es descritos


por K. Hulme pode ser considerado veross:mil; ninguém pode
negar falhas de orientaclo cometidas por Superiores Religio
sos. Falta de inteligencia e de generosidade pode existir em
toda parte onde haja criaturas humanas. Contudo o conjunto
que resulta dos quadros e episodios particulares referidos por
K. Hulme, é demasiado seco e formalista para que se possa
crer corresponda á realidade de alguma das comunidades exis
tentes ñas décadas de 1940 e 1950. Em particular, foi averi
guado que a Congregagáo Religiosa (mantida no livro sob
anonimato) <k qual pertencia Gabrielle Van Der Mal, longe
de ser espiritualmente estéril, era, ao contrario, movida por
auténtico fervor.

Alias, é importante ainda observar o seguinte : o livro


de Kathryn fíulme foi convertido em filme cinematográfico
da Warner Brothers. Ora a própria Gabriela, de volta ao
século, após haver assistido tres vezes ao filme-enredo da sua
vida passada, declarou :

"Nao tornare! a vé-lo, porque, se o tizesse, regressarla ao convento.


Ao avistar a cápela e as Religiosas,... nao posso deixar de ficar con
templando e de chorar amargamente, nao por arrependimento nem por
motivo semelhante, mas porque me sinto avassalada por tanta beleza. É
urna vida bela, a Vida Religiosa, para quem realmente a vive, para quem
a pode aceitar sem murmurar. Dizem que nao foi fracasso o falo de ter eu
delxado o convento. NSo me compreendem. Tantas outras Religiosas per-
severam e realizam devidamente essa vida; sabem levá-la. Eu nao o
soube e fracassei" (transcrito da revista "Ufe" em espanhol, 13 de junho
de 1959, p. 38).

Se este testemunho é auténtico (e nao há serios motivos


para duvidar disto), as críticas contidas no livro de Kathryn
Hulme perdem muito do seu alcance e significado. — Ulterio
res consideragóes sobre esta obra encontram-se ern PR 31/19S0,
pp. 294-300.

Passemos agora a urna

— 432 —
(MANICOMIOS, PRISOES E CONVENTOS* 37

3. Conclusoo
O titulo do livro de Erving Goffman anuncia muito mais
do que o livro contém. No tocante aos conventos ou á vida
religiosa regular, é extremamente pobre em dados e mal infor
mado. É o que lhe tira autoridade para falar sobre tal assunto.
O sociólogo teria feito obra melhor se houvesse estudado um
pouco mais a sua temática religiosa.
A vida regular poderá parecer absurda aos olhos da
razáo ou do bom senso meramente naturais, pois ela é conce
bida em vista de valores transcendentais. Por isto ela ultra-
passa a escala de valores que a prudencia humana tende a
estabelecer. Ela assim participa do escándalo e da loucura da
cruz que estáo no ámago da mensagem crista (cf. ICor 1,23).
Todavía a experiencia e a historia comprovam que essa loucura
é suma sabedoria. Sim; a cultura greco-romana foi transmi
tida aos bárbaros pelos monges ; a civilizagáo ocidental nasceu
sob o signo-do Cristianismo, que os monges anunciaram aos
povos europeus. Durante séculos as Ordens e Congregares
Religiosas foram as principáis intituicóes que se interessa-
ram pela lavoura, pela instrugáo e a cultura e, principalmente,
pela assisténcia aos desamparados (enfermos, criangas, an
daos, pobres...).
O ideal monástico supóe grandeza dalma e generosidade
(embora a fraqueza humana tenha, por vezes, sufocado tais
valores), ao passo que os manicomios e os cárceres foram
estruturados para personalidades deficientes, seja no plano
mental, seja no plano moral. Dever-se-ia, pois, concluir após
urna leitura critica do livro de Goffman : empenhemo-nos por
que naja menos necessidade de manicomios e cárceres e para
que o ambiente dessas instituigóes (que infelizmente sempre
existiráo) seja mais humano e mais impregnado daquele es
pirito de amor que deu origem aos mosteiros e conventos!
Bibliografía:
AUBRY, J., Teología da Vida Religiosa. Ed. Dom Bosco, S§o Paulo 1971.
GAMBARI, E., Maturldade Religiosa em Cristo. Ed. Paulinas, SSo
Paulo 1970.
HÁRING, B., 03 Religiosos do Futuro. Ed. Paulinas, SSo Paulo 1973.
MARTÍNEZ, H., Testemunhas e Sinals. Ed. Paulinas, Sao Paulo 1969.
PAULO VI, Sinal do Reino. Ed. Paulinas, SSo Paulo 1972.
RéGAMEY, P.-R., A Voz de Deus ñas Vozes do Mundo. Ed. Paulinas,
Sao Paulo 1976.
ÍDEM, Renovar-se no Espirito. Redescobrlr a Vida Religiosa. Ed.
Paulinas, Sao Paulo 1976.
TILLARD, J. M. R., Religiosos Hofe. Ed. Loyola, SSo Paulo 1970.
IDEM, Religiosos, Vivencia e Evangelho. Ed. Loyola, Sao Paulo 1973.

— 433 —
No cinema:

"o milagre da fé"

Em sinlese: O filme "O Milagre da Fé" rldicularíza de manelra


sórdida a religiosldade popular, insinuando que os milagres e a devocáo
dos fiéis aos santos nao sSo senáo fenómenos resultantes da Ignorancia
e da crendice.

Em resposta, observamos que a Igreja nSo Identifica vida de fé e


procura de milagres ou de curas milagrosas. A Igreja nSo se preocupa
com a obtencSo de portentos; é mesmo sobria e cautelosa sempre que
é apregoado algum fenómeno milagroso, pols sabe quanto é fácil con-
fundir-se milagre com fenómeno parapsicológlco e expressáo de credu-
lidade. Os milagres sSo admitidos, slm, pela Igreja mas dentro de con-
dlcSes bem definidas.

De resto, quem fe re a vida de fé, fere o próprlo homem, como Insl-


nuam os textos do famoso psicólogo Cari Gustav Jung citados no fim
deste artigo.
• • •

Comentario: Tem despertado comentarios calorosos e


protestos do público em geral o filme nacional «O Milagre
da Fé», de curta metragem, exibido em varios cinemas do
Brasil. É fortemente agressivo aos sentimentos religiosos do
povo brasileiro, recorrendo á ironía de baixo caláo. É o que
nos leva a propor sumariamente o conteúdo dessa película,
seguido de algumas ponderagóes.

1. O filme
A historia, breve como é, se abre com a cena de doís
meninos que se divertem langando papagaios (ou pipas) ao
ar. Acontece que os fios destes se cruzam no ar; assim os
papagaios caem sobre o telhado de urna cápela, onde flcam
presos. Entáo os meninos resolvem subir sobre o telhado, va-
lendo-se de urna escada. Enquanto lá se achavam tentando
reaver os papagaios, um deles removeu urna telha e pós-se a
urinar para dentro do recinto sagrado.
Logo depois vé-se que a cápela se abre e os fiéis váo
entrando. Urna devota se ajoelha aos pés de urna estatua de
Nossa Senhora e, de repente, verifica que esta lacrimeja;
julga ver um «milagre», que na verdade nada mais era do
que o resultado da atitude do menino posto sobre o telhado.

— 434 —
«O MILAGRE DA FE* 39

A crenca no «milagro se espalha de tal modo que muitas


pessoas, inclusive doentes, acodem ao santuario; julgam-se
beneficiados ou mesmo curados por via portentosa! A película
mostra filas de ónibus de peregrinos, barraquinhas e todo o
movimento habitual junto aos santuarios.
Assim termina o enredo, que vem a ser chocante pela
sátira e pela baixa maneira de apresentar a tese. Esta, em
última análise, ridiculariza os milagres e, indiretamente, tam-
bém a fé e suas atitudes populares. É o que sugere a per-
gunta :

2. Que dizer?
Faremos quatro ponderacóes ao filme em paula:
1) Existem sátiras nobres ou finas e sátiras grosseiras.
Ora o enredo do filme vem a ser grosseiro ou sujo... Além
do que, é pouco verossimil ou carece de gosto e finura, pois a
urina que caisse do telhado, passaria pela testa da estatua
antes de lhe escorrer dos olhos; quem contemplasse o sem
blante da imagem, perceberia claramente que nao se tratava
de lágrimas.
Os críticos de cinema tém observado que a qualidade de
tal filme é péssima, revelando indigencia intelectual e precari-
dade de instrumentos. A producáo denota lamentável falta de
sensibilidadc estética.
2) A Igreja Católica nao faz questáo de apregoar mila
gres. Antes, JEla se mostra cautelosa frente ás noticias de
ocorréncia de portentos, pois sabe muito bem que a fantasía
humana tende fácilmente a proclamar milagres onde há apenas
fenómenos parapsicológicos ou fatos corriqueiros (como no
caso do enredo do filme). Para que a Igreja reconheca a
autenticidade de determinado milagre, requer que
— o fenómeno em causa seja portentoso realmente, e
nao apenas segundo a imaginaejío inflamada ou o vozerío
do povo ;
— o fenómeno seja inexplicável aos olhos da ciencia con
temporánea, que deve tentar todas as vias possíveis para elu-
cidá-lo científicamente ;
— o fenómeno tenha ocorrido em contexto religioso ade-
quado. Na verdade, o milagre é sempre um sinal ou urna
palavra «forte» de Deus; por conseguinte, ele supóe um con
texto digno de resposta ou de intervencáo do Senhor Deus
(contexto de oracáo humilde e filial).

— 435 —
40 .-PKRGUNTE E RESPONDEREMOS> 238/1979

Ora o episodio exibido pelo filme está longe de preencher


tais condieóes. Jamáis seria tido oficialmente pela Igreja como
«milagre da fé».

3) Em alguns casos, a Igreja desabona formalmente


certas noticias de «milagre»; foi o que se deu aínda recente-
mente nos casos de Garabandal e El Palmar de Troya (Es-
panha), onde alguns devotos disseram ter visto a Virgen»
Maria aparecer. As autoridades eclesiásticas rejeitaram tal
interpretacáo dos fenómenos ocorridos.

Em outros casos, a Igreja permite que os fiéis apregoem


determinado milagre e se mostrem especialmente devotos em
dado santuario. A Igreja aceita isto por nao haver evidencia
de que haja ilusáo ou fraude; há mesmo em certas situacóes
indicios de verossemelhanc.a.

Deve-se reconhecer que nao raro a Igreja exerce solícita


agáo pastoral em santuarios muito procurados pelos fiéis (tal
é o caso de Porto das Caixas, RJ). Com isto as autoridades
eclesiásticas nao tencionam pronunciar-se em favor da auten-
ticidadc dos fatos tidos como milagrosos, mas apenas ícm
om mira aprovcilar a afluencia do fiéis para ofcrecer-lhcs
evangelizagáo e catequese ou para os ajudar a se estruturar
na fé e a se converter a urna vida nova.

A Igreja nao dá sempre grande valor aos fenómenos


ditos «de curas físicas» que constumam acontecer nos principáis
santuarios, pois é notorio que freqüentemente os devotos ima-
ginam ter sido curados, quando na verdade estáo apenas su
gestionados ou isentos de bloqueios psicológicos. Por isto nao
se deveria confundir a religiosidade crédula e nao crítica com
a fé. Esta independe de milagres. Os portentos, quando genuí-
nos, sao algo de contingente na vida crista.

4) A fé nao é um ato cegó ou umaatitude desligada da


luz da razáo. Para crcr adultamente, devo exigir credenciais,
ou seja, títulos que evidenciem a credibilidade do objeto da
fé. Para crer, portanto, devo por em exercicio a minha inteli
gencia; esta, tendo examinado os artigos de fó, me dirá que,
embora transcendam os limites da inteligencia, nao sao absur
dos, mas, ao contrario, vém apoiados em credenciais ou tes-
temunhos fidedignos. Na base desta conclusáo, crerei, se quiser;
crerei livremente, usando da minha inteligencia e da vontade.
Urna tal atitude merece o nome de fé e distingue-se nítida
mente de crendice e superstigáo.

— 436 —
<:O MILAGRE DA FÉ» 41

Infelizmente, porém, nao poucas pessoas tendem a identi


ficar sentimento religioso e credulidade com fé no sentido *?s-
trito desta palavra. Tal é o caso do autor de «Milagre da Fé».
Confundindo as coisas, o autor agride indiretamente a fé.
Muitos dos espectadores do filme poderáo concluir que a Reli
giáo é crendice, fruto da ignorancia e do sugestionamento,
quando na realidade as atitudes religiosas sao as que mais
dignificam o homem; sao aquelas que decorrem da intuicáo
de que a Verdade é mais ampia do que os limites da minha
inteligencia. A Religiáo é o valor que, por excelencia, leva o
homem ao heroísmo, a magnanimidade, a paciencia forte e,
ao mesmo tempo, humilde. Nao há, pois, vantagem em degra-
dá-la ou desmoralizá-la aos olhos do público nao crítico; quem
fere a Religiáo, fere o próprio homem.

A propósito, desejamos citar um trecho do Prefacio da


edigáo alema da obra de Cari Gustav Jung intitulada «Psico
logía e Religiáo» :

«Numo entrevista dada á televisáo inglesa, ao Ihe perguntarem


se acreditava\em Deus, Jung respondeu : 'I do not believe, I know'
(Nao creio; eu sei). Esta curta frase desencadeou urna avalanche
de perguntas de ral proporcáo que ele foi obrigado a manifesrar-se
a respeito numa carta dirigida ao jornal inglés de radio e televisáo
'The Listener". É digno de nota que o entomologista Jean-Henri Fabre
(1823-1915) exprimirá sua conviccáo religiosa em termos quase
idénticos : 'Nao acredito em Deus; eu o vejo'. Tanto Jung como
Fabre adquirirán» tal certeza no trato com a Natureza : Fabre, com
a natureza dos instintos, obcervando o mundo dos insetos; Jung, tío
trato com a natureza psíquica do homem, observando e sentindo as
manifestacóes do inconsciente» (p. VIII da traducao brasüeira, ed.
Vozes, Petrópolis 1978).

Apraz também citar o fato de que Jung fez gravar em


pedra, no alto da porta de sua casa de Küsnacht, as palavras
do oráculo de Delfos: «Invocado ou nao invocado, Deus estará
presente» (cf. NISE DA SILVEIRA, Jung: vida e obras0.
Ed. Paz e Térra, Rio de Janeiro 1978, p. 153).
Estas poucas consideracóes parecem suficientes para evi
denciar quáo despropositado e maldoso vem a ser o breve
filme «Milagre da Fé». Nao somente o senso religioso, mas
também a inteligencia e a dignidade do povo brasileiro, nao
tém senáo por que repudiá-lo.

Esteva© Bettencourt O.S.B.

_ 437 —
livros em estante
A Palavra do Senhor. Novo Testamento. Traducáo baseada no texto
original grego e anotada por Mons. Lincoln Ramos. 3? edlcSo revista. Ed.
Dom Bosco, Sao Paulo 1979, 115 x 180 mm, 991 pp.

Eis mais urna edicáo do Novo Testamento que, por sitas caracterís
ticas próprlas, merece destaque. Trata-se da antlga traducá"o de Mons.
Lincoln Ramos, outrora editada pelas Vozes, hoje inteiramente revista por
biblistas do Instituto Pió XI e publicada pela Editora Dom Bosco.

A tradugáo tem intuitos pastorals. Por isto, acompanham o texto bíblico


numerosas e úteis notas explicativas, urna ¡ntroducio em cada livro sagrado
e algumas tabelas cronológicas, que facilitam o uso do Novo Testamento.

Percorrendo o texto, sem pretender realizar urna crítica exaustiva,


observamos:

— o tratamento de tu a vos (com exclusáo da vocé[s]), que melhor


parece ressalvar a dignidade e singularidade do texto biblico;

— a palavra epíscopo em vez de blspo (Fl 1,1; At 20, 28...), salien-


tando a peculiaridade de urna funcSo que se desdobrou posteriormente em
episcopado e presbiterado ;

— em Jo 7, 37s, a pontuacáo é a habitual, dando a entender que


o fiel é fonte de rios de agua viva, quando na verdade o Messias é tal
fonte. Teria sido necessário pontuar de modo a respeitar o paralelo entre
"Quem tem sede, venha" e "Beba, aquele que eré em mim";

— cm Mt 19, 12, a nota explicativa interpreta "eunucos por causa


do Reino do céu" no sentido do celibato voluntario sacerdotal ou religioso.
Ora, segundo Jacques Dupont, este texto se refere aos homens casados
que, nao podendo vi ver conjugalmente, se véem obrlgados ao celibato,
visto que o Evangelho nSo autoriza divorcio ou dissotucSo do matrimonio
com dtreito a segundas nupcias. Valeria a pena lembrar esta nova e im
portante interpretado oferecida por J. Dupont.

Oe modo geral, porém, a traducSo é boa e fidedigna. Ñas Introduces


a equipe de revisio manteve poslcñes equilibradas: as cartas pastorais
sao atribuidas ao próprlo S. Paulo, bem como Eféslos. A carta aos Hebreu3
seria de um discípulo dos apostólos (sentenca corrente), como também
a 2 Pd.

Desojaríamos sugerir que as Introduc&es fossem apresentadas em


tipo gráfico diverso do tipo do texto bíblico, para que melhor se dlstin-
guisse o texto sagrado dos seus concomitantes.

Em suma, saudamos com prazer a nova edicSo do Novo Testamento,


que certamente merece o seu lugar entre as demals, pols é fluente, clara
e enriquecida por nao poucas notas explicativas ao pé de cada página do
texto sagrado.

Comentarlo ao Evangelho de Sao Lucas, por A. Lancellottl e G.


Boccall — TraducSo de Antonio Angonese e Ephralm Ferreira Alves —
Ed. Vozes, Petrópolls 1979, 135 x 210 mm, 236 pp.

— 438 —
LJVROS EM ESTANTE 43

Tem-so aquí um comentario sólido e, ao mesmo tempo, claro e com-


preenslvel. Os autores se esforcam por realcar as notas típicas do tercelro
Evangelho, que prima pelo seu Interesse hlstoriográfico assim como pelo
destaque dado á misericordia e á salvacSo trazldas pelo Senhor Jesús.
Urna boa Introducfio precede o texto sagrado, ambientando o leitor ñas
características de Lucas e da sua obra.

Comentarios do texto bíblico fundamentados na exegese moderna e


destinados ao público serfio sempre benvlndos no Brasil. Eis por que
registramos com prazer a edicto do livro em pauta e aguardamos a publi-
cag9o dos que se referem aos outros evangelistas.

Uvres e fiéis em Cristo. Teología Moral para sacerdotes e lelgos,


por Bernhard Haerlng. Vol. I: Teología Moral Geral. Traducao de Ir. Isabel
Fontes Leal Forrelra. — Ed. Paulinas, SSo Paulo 1979, 160 x 228 mm,
459 pp.

O autor é famoso por seu primelro manual de Teología Moral, tra-


duzido para quatorze Idiomas, Inclusive para o portugués (com o titulo
A Let de Cristo). Vinte e cinco anos depols de terminar o tercelro volume
de "A Le] de Cristo", o autor refez a sua obra, beneflclando-se de nume
rosas experiencias em cursos ministrados na Europa, na América do Norte
e no Tercelro Mundo. Temos hoje em portugués a traducSo do primelro
volume da nova obra, que compreende mals dols volumes : A verdade vos
faré Iivrea e Luz para o Mundo.

O que o novo Manual traz de especifico, é urna considerado mals


atenta do aspecto subjetivo e psicológico dos atos moráis, em oposicáo a
um enfoque muito objetivo e quantitatlvo do comportamento moral. Nfio
há dúvida de que a estima do elemento subjetivo e pessoal é Importante
na Moral; todavía pode também redundar em subjetivismo destruidor de
todo o edificio da Moralldade. B. Haerlng procura escapar a esta perspec
tiva, como se depreende das suas ponderacQes a respeito da Ética da
situacáo (pp. 329-333; cf. p. 298), mas, mesmo assim, o seu llvro apre-
senta varios tópicos sujeltos a dlscussfio.

Tenhamos em vista particularmente o que o autor propSe a respeito


de opcSo fundamental e pecado. Distingue entre pecado venial e pecado
mortal: este último só ocorre quando é atetada a opcáo fundamental do
cristSo ou quando este desiste de procurar Deus e a emenda de seus
vicios. Quando, porém, o crlstao comete algo de grave, mas logo se ar.e-
pende e continua a lutar para nüo cair no pecado, nao há pecado mortal;
há, sim, pecado venial grave. Por conseguinte, alguém pode cometer
pecado venial grave e permanecer em estado de graca; cf. pp. 200-204,
362-375.

Esta poslcSo de Haerlng é sujeita a serias dúvidas. Tenha-se em


conla, por exempto, a DeclaragSo da S. Congregado para a Doutrina da
Fé sobre alguns pontos de Ética Sexual (29/12/75). Este documento nao
distingue entre pecado grave e pecado mortal; além do que, admite haver
pecado mortal mesmo quando nSo se muda a opcSo fundamental do sujeito:

"Segundo a doulrina da Igreja, o pecado mortal que se opóe a Deus,


nao consiste apenas na resistencia formal e direta ao preceilo da carldade;
ole veiifica-se igualmente naquela oposicao ao amor auténtico que está

— 439 —
44 -:PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 238/1979

incluida em toda transgre9a3o deliberad», em matarla grave, de cada urna


das lels moráis...

O homem, portanto, peca mortalmente nSo s6 quando as suas acOes


proeedem do desprezo dl*eto do amor de Deu9 e do próximo, mas tanv
bém quando ele, consciente e Inrremente, faz a escolha de um objeto
gravemente desordenado, seja qual for o motivo deasa sua escolha" (doc.
citado, rfl 10).

Mals. Perguntaríamos a Haerlng: se alguém cal em adulterio cons


ciente e livremente, mas guarda sua Intencáo de fidelldade a Deus e á
familia, conserva o estado de graga (nSo peca mortatmente) ? Por con-
seguinte, pode tranquilamente receber a S. Eucaristía, aem procurar pre
viamente o sacramento da Reconcillacáo? — Cremos que, segundo os
principios de Haerlng, a resposta é positiva — o que redunda em aberra-
cSo moral.

é neste e em outros pontos que o livro de Haering se torna discu-


tivel. NSo deverla ser adotado como manual ñas Faculdades de Teología
e nos Seminarios, nem pode servir Incondicionalmente de parámetro para
pastores e catequistas, embora tenha belas páginas e seja de estilo fácil
e fluente. A sua doutrina sobre opcfio fundamental e pecado pode gerar
serlas confusdes e aberracñes.

Moral de Atltudes. Vol. 1: Moral Fundamental, por Marciano Vidal.


TraducSo do Pe. Ivo Montanhesl C.SS.R. — Ed. Santuario. Caixa Postal 4,
12570 Aparecida (SP), 140 x 210 mm, 543 pp.

Marciano Vidal é sacerdote redentorista, que se vem impondo no


campo da Teología Moral como professor no Instituto de Moral de Madrid
e autor de diversas obras, das quals algumas ja traduzidas para o portugués.

O volumé ácima acha-se em sua tercelra edlcSo na língua original


espanhola (1978). Como jovem moralista, o autor tenclona repensar os
diversos temas da Moral Fundamental (conceltos de Ética, ato humano,
conscléncia moral, pecado, vlrtude...); a mente com que aborda essa
larefa, é exposta pelo próprlo autor na apresentacflo do seu livro :

"Advirto, desde ]á, que nSo pretendo romper com todos os esquemas
anteriores para construir ateo completamente novo e original. Procuro,
porém, oferecer urna olentacSo que a|ude a paasar de um modo casuístico
de cnlender as categorías moráis para urna forma mals personalista. Estou
consciente de que é necessárlo continuar camlnhando para novas formu
lares, trabalho em que, por outro lado, me slnto empenhado".

O autor e seus colegas moralistas lém raz3o quando se preocupam


ccm o aspecto demasiado casuistico e objetivlsta que a Teología Moral
assumiu nos últimos séculos. É realmente necessárlo que se procure levar
mals em conta o aspecto pessoal ou subjetivo do agir humano.

Um dos lomas que mals tém sido considerados nesta perspectiva, é o


do pecado. Marciano Vidal dedica ao assunto o seu capitulo 8 (pp..331-468):
estuda ai o histórico da quostáo e as sentengas de diversos autores antl-
gos, modernos e contemporáneos. Concluí o capitulo propondo que "se
ponha entre parénteses a classificacáo do pecado em mortal/venial e

— -140 ■-
grave/leve", pois estas categorías se acham demasiado presas á forma da
celebracáo do sacramento da Penitencia, que exige a acusacáo dos peca
dos segundo a especie e o número. Para substituir a classificacáo usual,
M. Vidal sugere urna diversificacáo de formas de responsabilizado moral.
Haveria, pois:

— Pecado-opgao: A opgSo constituí a estrutura fundamental da vida


moral; da¡ ser o pecado-opcáo o pecado'em sua dimensáo mais profunda.

— Pecado-atilude: É forma de pecado que se realiza de modo


global em alguns dos setores da existencia crista, é um pecado que pede
ríamos chamar "setorial".

— Pecado-ato: É o pecado singularizado, que nao comporta todo


o compromisso da pessoa, mas que expressa a opeáo e as atitudes na
precariedade do "aqui" e "agora" da vida. Cf. pp. 465-468.

Esta posicáo de M. Vidal refeie-se a opgao fundamental como a do


Pe. Háring. Todavia é menos avancada do que a deste outro autor;
nenhuma objecáo se Ihe pode opor, precisamente porque nao fala de
"grave" ou "leve"... Será licito, porém, perguntar se há vantagem em
esqueser as nocoes de pecado leve/venial e grave/mortal. Na praxe pas
toral, será sempre oportuno propor criterios para que alguém possa avallar
se está em estado de grasa ou nao, e se, por consegunte, pode receber
a S. Eucaristía sem recorrer previamente ao sacramento da ReconciliagSo.
Para que a Teología Moral se torne mais personalista, nao há necessidade
de se Ihe tirarem certos referenciais objetivos, sem os quais os conceitos
se tornam vagos ou demais sujeltos a apreciacoes subjetivas e ilusorias.

De resto, desejamos louvar o esforzó de M. Vidal por renovar a


Teología Moral. A sua obra erica na apresentacáo de sentencas e infor-
macSes, guardando aínda o seu cunho de texto de aulas universitarias.
O leitor i lucrará com o estudo do livro em pauta, mas aínda nSo o poderá
tomar como expressáo consumada da renovacáo da Teología Moral; a
sintese entre o subjetivo e o objetivo (dois elementos imprescindiveis na
Moral) será sempre algo de difícil.

Puebla: análise, perspectivas, inlerrcgacóes. por L. Boff, Benl dos


Santos, R. M. Roxo e outros. Colegio "Teología em diálogo". — Ed. Pau
linas, Sao Paulo 1979, 160 x 230¡ mm, 154 pp.

Este livro consta de doze artigos, devidos a teólogos de Sao Paulo,


a respeito do documento final de Puebla e das suas conseqüéncias pas-
torais. A tónica dos estudos assim apresentados recai sobre a justiga social,
nada havendo sobre as verdades que osbispos em Puebla quiseram recor
dar a respeito de Jesús Cristo, da Igreja e do homem. Certas páginas do
livro sao elucidativas e úteis para o aprofundamento do texto de Puebla;
outras, porém, poderíam ser retocadas no sentido de certa moderagao.
Assim, por exemplo. se lé á p. 78: "ou todos se convertem para a
agio libertadora ou deixam de ser cristáos"; á p. 71 : "Certos movimentos
de Igreja, desligados de auténtica pastoral social, produziram cristáos...
moralmente bons em suas opgoes, cujos conteúdos podem estar sendo
moralmente injustos". Tais afirmagSes, categóricas como sao, parecem
unilaterais; "simplificam" indevidamente os problemas. Gostariamos de
que, na literatura recém-publicada sobre Puebla, se levassem em consi-
deragáo e se comentassem as proposigdes sobre Cristo, a Igreja e o
homem que, após Joáo Paulo II, os bispos quiseram lembrar aos fiéis da
América Latina.
E.B.
AS VERDADES SOBRE CRISTO
"É DEVER NOSSO ANUNCIAR CLARAMENTE, SEM DEI-
XAR DÚVIDAS OU EQUÍVOCOS, O MISTERIO DA ENCARNA-
CÁO: TANTO A DIVINDADE DE JESÚS CRISTO, TAL COMO
A PROFESSA A FÉ DA IGREJA, QUANTO A REALIDADE E
A FORQA DE SUA DIMENSAO HUMANA E HISTÓRICA.

DEVEMOS APRESENTAR JESÚS DE NAZARÉ COMPAR-


TILHANDO A VIDA, AS ESPERANZAS E AS ANGUSTIAS DO
SEU POVO E MOSTRAR QUE ELE É O CRISTO ACREDITADO,
PROCLAMADO E CELEBRADO PELA IGREJA.

JESÚS DE NAZARÉ, CONSCIENTE DE SUA MISSAO :


ANUNCIADOR E REALIZADOR DO REINO E FUNDADOR DE
SUA IGREJA, A QUAL TEM PEDRO COMO ALICERCE VISi-
VEL; JESÚS CRISTO VIVO, PRESENTE E ATUANTE NA
IGREJA E NA HISTORIA.

NAO PODEMOS DESFIGURAR, PARCIALIZAR OU IDEO-


LOGIZAR A PESSOA DE JESÚS CRISTO, NEM FAZENDO
DELE UM POLÍTICO, UM LÍDER, UM REVOLUCIONARIO OU
UM SIMPLES PROFETA, NEM REDUZINDO AO CAMPO DO
MERAMENTE PRIVADO AQUELE QUE É O SENHOR DA
HISTORIA.

FAZENDO ECO AO DISCURSO DO SANTO PADRE AO


INAUGURAR NOSSA CONFERENCIA, AFIRMAMOS : 'QUAL-
QUER SILENCIO, ESQUECIMENTO, MUTILACÁO OU INADE-
QUADA ACENTUAQAO DA INTEGRIDADE DO MISTERIO DE
CRISTO QUE SE APARTE DA FÉ DA IGREJA, NAO PODE
SER CONTEÚDO VÁLIDO DA EVANGELIZAQÁO'. UMA COISA
SAO AS 'RELEITURAS DO EVANGELHO, RESULTADO DE
ESPECULAQÓES TEÓRICAS1 E 'AS HIPÓTESES, TALVEZ
BRILHANTES, PORÉM FRÁGEIS E INCONSISTENTES QUE
DÉLAS DERIVAM' E OUTRA A 'AFIRMACÁO DA FÉ DA
IGREJA: JESÚS CRISTO, VERBO E FILHO DE DEUS, SE
FAZ HOMEM PARA APROXIMAR-SE DO HÓMEM E PRESEN-
TEÁ-LO, PELA FORQA DE SEU MISTERIO, COM A SALVA-
QAO, GRANDE DOM DE DEUS' (JOÁO PAULO II, DISCURSO
INAUGURAL I, 4,1,5 — AAS, LXXI, p. 190, 191)".

(DOCUMENTO DE PUEBLA Nos. 175 - 179)

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